Coordenador do Observatório dos Poderes Locais, sediado no Cento de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Fernando Ruivo acompanha com grande cepticismo o projecto de descentralização em curso. Para este sociólogo, autor de diversos estudos sobre o poder local, as comunidades urbanas e as áreas metropolitanas que estão a ser desenhadas vão redundar numa "sobreposição de mapas", fragmentando o território e agravando o isolamento de alguns municípios. Até por isso, Fernando Ruivo acredita que a regionalização há-de acabar por se impor às "novas mentalidades".
PÚBLICO - Como avalia este projecto de descentralização?
Fernando Ruivo - Para já, estamos a fazer tábua rasa das NUT [Nomenclaturas das Unidades Territoriais para fins estatísticos], das pequenas associações de municípios, dos distritos. Há uma sobreposição de mapas territoriais que vai gerar o caos geográfico. Os distritos, por exemplo, não serão fáceis de anular. Apesar de terem sido criados no séc. XIX e de não terem gerado identidades territoriais, são os patamares das eleições políticas e ainda é a partir deles que se fazem as contas. O que me é dado ver é uma enorme confusão que não é passível de criar identidades próprias. O que é está por detrás disto são critérios meramente quantitativos, o número de municípios e de habitantes. Ora a identidade - que já existe um pouco em termos regionais, embora às vezes fragmentada - cria-se com critérios essencialmente qualitativos. Não há nenhuma estratégia visível neste processo que não a do palco político, que não a de obter o maior número de população possível para poder exercer pressão reivindicativa sobre o poder central. O país fica com uma série de tiras territoriais, muitas vezes sem fronteira umas com as outras. Fica com comunidades intermunicipais e comunidades urbanas que não são propriamente urbanas e áreas metropolitanas (AM) onde não existem metrópoles. E nos interstícios destas tiras vai ser o deserto, uma série de territórios que, por alguma razão, não tiveram acesso a estas novas fórmulas e que ficaram ainda mais isolados.
Com que consequências devemos contar?
A fragmentação do território, desde logo. Vamos ter um somatório de ilhas municipais baseadas em cálculos políticos, e pessoais por vezes, e não numa dinâmica supermunicipal, que era o que estava por trás desta legislação. Neste momento, a estratégia é roubar municípios uns aos outros, tentar seduzi-los, atraí-los, sem ter em conta o território que se está a criar. Todas as novas regiões que estão a aparecer geram problemas: o Médio Tejo versus Leiria com a questão de Ourém, que nem sei se já está resolvida; o da Beira Interior versus Viseu, por causa de Seia e Gouveia, etc. E não sei se estas comunidades urbanas ou áreas metropolitanas terão um peso sustentado para negociar com a Europa. Esquecemo-nos disso.
Duvida do poder de influência das novas entidades territoriais. Porquê?
Desde logo, por não haver órgãos eleitos, com a legitimidade do voto. E depois, quem dirige, com que cariz, que planos estratégicos existem para esse território, que competências vai ter?
Já há algumas definidas.
Mas ainda é muito pouco. Se compararmos com a lei 169/99, que transferia quase tudo para os municípios, e que não foi regulamentada... O meu medo é exactamente esse: temos legislação lindíssima, mas não regulamentamos e as coisas não funcionam.
Critica a inexistência de líderes eleitos nas novas entidades territoriais. Em 1998, um dos argumentos contra a regionalização era o receio de se criar uma nova classe política.
Era o argumento do dinheiro que se ia gastar com ela. Fez-se passar a ideia de que o poder é parasita e corrupto ao nível local. É óbvio que era preciso gente para governar as regiões. É óbvio que vai ser preciso gente para governar as comunidades urbanas, as AM. Se vir bem, as AM existem, mas não têm recursos humanos, não funcionam. Não existe, ao que sei, uma Autoridade de Transportes na AM de Lisboa. Existe um dirigente, mas não foi eleito pelos cidadãos. Recordo que em Itália, nas eleições do ano passado, se elegeram dirigentes regionais. O que está a acontecer em Espanha, relativamente às autonomias basca e catalã, é sem dúvida algo perigoso. Mas que aquilo funciona, funciona. E depois, este modelo proposto utiliza no fundo a mesma máquina burocrática que estava prevista para as regiões: assembleias, juntas, concelhos, tudo isto sem a vigilância democrática dos cidadãos, tudo isto podendo produzir 'enquistamentos' incalculáveis, blindar ainda mais o sistema político local, criar novos 'dinossauros' que terão ainda mais força, por não dependerem do voto popular.
O regime de associação quinquenal das novas entidades é razoável?
Devia ser mais estável, de pelo menos dez anos, porque é a partir dessa altura que se começam a produzir frutos. Cinco anos é muito curto. Não percebo a ideia do legislador. Depois, é preciso não esquecer que 63 por cento dos municípios já participam numa associação e 26 por cento em duas ou mais. Mas são associações recentes, da década de 80, que acabam quando os fins específicos para que foram criadas - a ETAR, o Plano Director Inter-Municipal, etc - são alcançados. A maior parte delas não funciona.
Por falta de recursos humanos e financeiros?
Também, mas sobretudo por terem sido criadas à revelia do tecido social local, que não participou na sua criação. Por isso, é natural que estivessem votadas ao fracasso.
Que destino lhes advinha, quando coexistirem com as novas entidades territoriais?
Os municípios vão continuar a ter um território para a educação, outro para o saneamento, outro para a água, outro para a reivindicação, sem haver bases - e sem as criar - de uma identidade local. Esta descentralização não é um esforço claro de verdadeira localização de políticas públicas.
Faltaram os estudos prévios?
Já temos estudos. Temos geógrafos, sociólogos, economistas a trabalhar em todo o processo de territorialização de políticas públicas, mas não me parece que as decisões que estão a ser tomadas, sem auscultar os eleitores, os tomem em conta.
Esta forma de descentralização devia ser referendada, como a regionalização?
O argumento tem a sua lógica. Se este processo avançar bem, coisa que não estou em crer, vai contornar as regiões que estão na Constituição. Mas a regionalização há-de impor-se às novas mentalidades. Não faz sentido um país com a nossa área e com a nossa população não ter regiões. Dizem-nos que somos pequenos, etc. Vão à Holanda, à Áustria, à Bélgica e vejam quantas províncias há, quantos municípios há, quantas instâncias intermédias supra-municipais existem a funcionar e bem.
Perante isto, o que deve o Governo fazer?
Devia ter pensado nas consequências possíveis do processo. Não me parece que o tenha feito. Mas agora o processo está lançado. 'Alea jacta est'.