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15-05-2005        Público
O poder "democrático" quase absoluto do presidente da Câmara virá reforçar o enfraquecimento da acção colectiva local, da comunicação, fiscalização e transparência política, conduzirá à intensificação da hipertrofia do voto em detrimento de outras formas de participação política, bem como a uma indesejada autonomização do patamar político em relação à sociedade civil.
Não são muitas as diferenças entre os pacotes legislativos sobre as eleições autárquicas apresentadas pelo PS e PSD. A divergência quanto à integração (PSD) ou não (PS) de vereadores da oposição nos executivos camarários parece ser uma delas, com o PS a apresentar um nítido projecto mais conservador consagrando executivos camarários de cariz absolutamente unipartidário. Estamos porém em crer que, após a aprovação na generalidade, a discussão destes projectos na especialidade conduzirá a uma rápida convergência, muito bem negociada, sobre estes assuntos por parte de ambos os grupos parlamentares, com resultados sem grandes dissonâncias, por estranho que pareça. E, a assim ser, poderá então afirmar-se termos estado, na realidade, perante um único grande projecto legislativo (com origens que remontam a 2001) o qual, em geral e a pretexto de uma pretensa governabilidade local, irá acentuar determinados efeitos perversos que já se encontram presentes na cena política municipal, minando a, já por si débil, democracia local. Se não vejamos.
É que tal projecto comum, o dos executivos tendencialmente mais ou menos monocolores, com escolha pessoal dos vereadores por parte do presidente de Câmara entre os eleitos da lista vencedora, conduz na prática a um fechamento ou blindagem do sistema político local e a um reforço, quer do labirinto político local, quer dos labirintos entre o local e o central.
Fechamento do sistema político local, porque a unipartidarização dos executivos leva a uma diminuição da intensidade política no território da eleição. Onde, convenhamos, participação, cidadania activa e comunicação política não tenderam, em geral e até agora, a ser particularmente fortes. Fechamento, porque a unipessoalização camarária representa um reforço das relações meramente pessoalizadas nos tecidos sociais locais, normalmente por si próprios já tão personalizados. Fechamento, porque a escolha pessoal dos vereadores por parte do Presidente potencia a existência de um autêntico rebanho de lealdades congregado em torno de um umbigo presidencial, de uma sociedade de corte e a prevalência do círculo íntimo. Fechamento ainda, porque o enfraquecimento da pluralidade de vozes intervenientes que daqui decorre aponta para a asfixia do debate político democrático e da negociação no espaço municipal. Fechamento, por último, porque a situação de quase monopólio do exercício da política local para que os projectos apontam vem em reforço de situações de autismo político com que é frequente os cidadãos se depararem no decurso de muitas decisões camarárias. Um fechamento ou blindagem que, política e sociologicamente, se torna muito difícil de fiscalizar, atendendo ao funcionamento e composição actuais das Assembleias Municipais. Tudo isto em nome da democracia local.
Por todos estes fechamentos se reforça o labirinto local. Este pode abrir-se ou fechar-se consoante os interesses envolvidos. É sabido que as redes locais desempenham um papel muito importante no processo da sua abertura. Nesse sentido, a ancoragem de determinados interesses em tais redes permitiria uma agulhagem personalizada, mais precisa e favorável, da decisão municipal. É igualmente sabido que se trata de um fenómeno muito difícil de controlar política e juridicamente - e que o bom senso sociológico antes aconselharia a uma maior proliferação de redes, para que a multiplicidade de interesses legítimos e as próprias redes se pudessem comummente fiscalizar. Ora, os referidos fechamentos provocam uma menor fluidez do tecido relacional entre a sociedade local e o exercício do Poder Local. Quer isto dizer que, em vez de multiplicação de redes locais, teremos a possibilidade do fechamento de uma rede consolidada em torno dessa corte municipal, a qual, ao enquistar-se e blindar-se, não permitirá o exercício de influência e controlo por parte de outros actores locais dotados de igual legítimidade democrática para os levar a cabo.
Por último, reforçado sai ainda o labirinto que se encontra no centro das relações entre Poderes Local e Central. À semelhança do anterior, trata-se de um complexo de canais através do qual determinada pretensão local pode vir a ter acesso às autoridades centrais, lugar onde procurará efectuar a mediação da justeza das suas pretensões e negociar resultados, um processo oficialmente silenciado mas amplamente reconhecido em ciência política como comum na vida das democracias práticas: obter resultados, influência e concretizações no território de determinado local. Dada a importância da mapeação pessoal e estratégica dos seus percursos, é conhecida a importância da experiência, dos conhecimentos e da aptidão reticular da pessoa que irá procurar realizar tal mediação, o presidente de Câmara. Ora, a intensificação da personalização do cargo (mesmo com possível limitação de mandatos), o poder "democrático" quase absoluto (apesar de eventuais moções de rejeição da Assembleia Municipal), virá reforçar o enfraquecimento da acção colectiva local, da comunicação, fiscalização e transparência política, conduzirá à intensificação da hipertrofia do voto em detrimento de outras formas de participação política, bem como a uma indesejada autonomização do patamar político em relação à sociedade civil, patamar de que os cidadãos tendem a sentir-se cada vez mais distantes, uma distância ao poder em geral e, muito especialmente, a esse poder que era suposto estar-nos mais próximo, o Poder Local... Coordenador do Observatório dos Poderes Locais (www4.fe.uc.pt/opl). Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

 
 
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