Dotadas de agendas próprias, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e as organizações sindicais são chamadas a intervir sobre realidades laborais adversas.
Enquanto serviço público que supervisiona o cumprimento da legislação laboral, a ACT persegue uma melhoria das condições de trabalho em busca de saúde e segurança em todos os setores de atividade privados. A sua missão é preventiva (da ocorrência de incidentes, conflitos, acidentes de trabalho e doenças profissionais), fiscalizadora (das condições em que o trabalho é realizado) e reparadora (no sentido de induzir melhorias legislativas).
Por sua vez, as organizações sindicais nasceram para emancipar, homogeneizar e internacionalizar a classe trabalhadora. Cumprem uma função democrática (dar voz a quem trabalha), económica (luta por melhorias salariais) e social (promover integração socioprofissional). E delas decorre uma missão de denúncia (de atropelos laborais), organização (reforço do número de filiados) e reconhecimento de causas (baseada em formas de luta/negociação várias).
Mas para lá dessa meritória e conhecida faceta de resgate da dignidade laboral, alguns desafios (porventura mais “escondidos”) devem ser ponderados pela ACT e pelo sindicalismo.
1. A cobertura de novas formas e condições de trabalho. Assim como não se transitou suficientemente de uma inspeção da “relação de trabalho subordinado” para as “formas atípicas de emprego”, também as organizações sindicais nasceram “formatadas” para o mercado formal de trabalho. Seria, pois, recomendável uma ACT mais ousada e um “sindicalismo de precários” mais efetivo, mesmo que o combate à precariedade esteja subjacente à intervenção de ambos.
2. A diversificação cooperativa. Este desafio é corolário do anterior e tem implícita a cooperação entre associações, movimentos, comunidades de peritos, etc. Do mesmo modo que faz parte do enquadramento internacional da inspeção do trabalho a cooperação com instituições diversas (sistema de segurança social, comunidades técnica e científica, peritos vários), também os sindicatos são desafiados a cooperar e confiar noutras organizações de combate à precariedade. Aliás, suportes legais como a lei 55/2017, que aprofunda o regime jurídico da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (instituído pela lei 63/2013), ou o Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP) constituem importantes estímulos nesse sentido.
3. A gestão de tensões interorganizacionais. De certo modo rival do anterior, este desafio sugere que a intervenção reguladora das condições de trabalho não está livre a focos de tensão. Como o testemunham, por mais de uma vez este ano, as críticas do Sindicato da Hotelaria do Norte. Este sindicato lamentou que, perante denúncias de situações graves no setor (trabalho clandestino, horários de trabalho desregulados, 12 horas diárias, trabalho suplementar não pago, ausência de medicina no trabalho, ausência de formação profissional, etc.), apenas uma escassa percentagem dos pedidos de intervenção à ACT tenha sido respondida. O que em parte poderá explicar-se pela escassez de recursos humanos e materiais ao dispor desta. Um problema, de resto, a que organização sindical também não está imune.
4. A intervenção cruzada. Não se trata aqui de desvirtuar procedimentos ou toldar missões da ACT e do sindicalismo. Mas sendo a ACT um serviço do Estado focado em relações laborais privadas, é legítimo indagar em que medida poderia vigiar também as condições de trabalho reguladas pelo próprio setor público (não obstante, por exemplo, a portaria que regula o PREVPAP prever a consulta à ACT). Por outro lado, questiona-se em que medida o sindicalismo (com maior peso no setor público) poderia atender (de modo mais veemente) a problemas gerados a partir de relações laborais privadas, onde a insegurança, a instabilidade e o medo são recorrentes.
Alguns destes desafios estão por certo implícitos ao conhecido relatório da ACT sobre os atropelos laborais praticados na PT por parte da Altice (sua detentora), designadamente de assédio moral, não atribuição de funções a trabalhadores, transferência de trabalhadores para outras empresas (que as organizações de trabalhadores classificam como forma disfarçada de promover despedimentos), incumprimento de contratos coletivos, etc. (veja-se o manifesto https://manifestoalticeblog.wordpress.com/). E desse relatório, inclusive, outros apelos se poderiam fazer. Tais como, instigar a ACT a assumir uma atitude mais ofensiva e a adotar posições mais comprometidas e sancionatórias da atividade das empresas, sem ter de aguardar pela via judicial. Ou estimular os sindicatos a um reforço das estratégias de colaboração associativa, bem como da informação e pedagogia contínuas a transmitir aos coletivos de trabalhadores (dessa e de outras empresas) e à opinião pública em geral.
Pela sua volatilidade, o mundo das empresas (mormente o universo das multinacionais) carece da vigilância apertada. E para suster práticas à margem da lei e reduzir os focos de assimetria entre capital e trabalho, ACT e sindicalismo são cruciais.
Mas para combaterem os atropelos aos direitos humanos do trabalho vindos “de fora”, precisam, também eles, de olhar “para dentro”, encarando de frente e com outra regularidade alguns dos desafios aqui propostos. No fundo, como no caso da tragédia dos incêndios, espera-se do Governo e das organizações da sociedade um permanente exercício de autorreflexividade.