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20-04-2004        Diário de Coimbra e A Cabra
Ao som de «Grândola Vila Morena», naquela madrugada gloriosa do 25 de Abril de 1974, os nossos capitães do MFA derrubaram o regime político fascista e puseram fim à guerra colonial. O povo veio em massa para as ruas, primeiro, celebrando a liberdade, com cravos vermelhos na mão, e, logo depois – passada a primeira fase de júbilo e a festa colectiva do 1º de Maio de 1974 –, participando activamente nas lutas sociais e na construção do futuro colectivo.
Apesar das múltiplas clivagens ideológicas que emergiram na sociedade portuguesa desse período (e deixando de parte todos os excessos), podemos dizer que se viveu uma utopia emancipatória, em que o sentimento de comunhão produziu subjectivamente uma espécie de comunidade ampliada e solidária, em que, sob a influência marcante da ideologia marxista, a classe trabalhadora e o operariado surgiram como o motor dessa «revolução imaginária». Tal experiência colectiva, apesar de assentar numa imensa ilusão – e justamente porque foi subjectivamente vivida com uma intensidade extrema – teve um alcance que foi muito para além das suas consequência imediatas. Os seu efeitos foram múltiplos e contraditórios, mas, acima de tudo, galvanizou a esperança de todo um povo em torno de valores orientados para o progresso, a justiça social e a solidariedade.
Porém, ao lado da «revolução imaginária», e mesmo depois desses sonhos se terem desfeito no ar, ocorreu uma «Revolução concreta». Revolução escrita com ‘R’, e não, como no actual discurso oficial, uma simples «evolução», supostamente suprimida das clivagens político-ideológicas, das opções arriscadas, dos antagonismos e dos custos sociais, como se a democracia resultasse de uma espécie de «evolução na continuidade» saída pacificamente do Estado Novo. Com todas as suas contradições, continuidades e rupturas, avanços e recuos, a transformação que está perante nós teve traços verdadeiramente revolucionários na nossa sociedade ao longo dos últimos 30 anos. As mudanças progressistas são indesmentíveis e a democratização é uma realidade em variados campos.
Todavia, são também inegáveis os novos motivos de apreensão, sendo talvez o desinteresse dos cidadãos face aos problemas da vida pública um dos principais. Por um lado, a terciarização da economia, a concentração urbana e o desaparecimento ou fragmentação crescente da comunidade local têm contribuído para o aumento do individualismo, solidão, egoísmo e artificialidade das relações sociais. Vivemos em sociedades de risco, a nível local e a nível global. Por outro lado, problemas como o desemprego, a precariedade, a pobreza e a exclusão social, reflexo da crise e desintegração de alguns dos mecanismos que asseguraram o «contrato social» (e da perda de algumas das conquistas de Abril, bem expressa no novo Código do Trabalho), contribuem cada vez mais para aumentar a imprevisibilidade, a sensação de insegurança e a desconfiança nas instituições.
A era de individualismo e de «pós-contratualismo» que hoje atravessamos está a produzir novas gerações de indivíduos frágeis, despojados e inseguros, que encenam quotidianamente um jogo de máscaras para esconder dos outros essas mesmas fragilidades e sentimentos de isolamento. Passamos por uma fase de pessimismo que se reverte em evasão individual, alienação deliberada, além das patologias do foro pessoal e familiar. Vivemos um processo que, se não for rapidamente travado, coloca em risco não só a possibilidade da vida colectiva e o princípio da comunidade como os próprios pilares do regime democrático.
Relembrar o 25 de Abril nos seus 30 anos de vida é remeter alguns dos graves problemas da actualidade para o espírito de comunhão colectiva que as gerações dos anos 70 tiveram a felicidade de viver. O torpor fatalista que tem marcado os sentimentos colectivos do nosso país nos últimos tempos só pode ser revertido se voltarmos a acreditar mais em nós próprios e no nosso semelhante. Recuperar a esperança e reactivar o espírito de solidariedade e participação cívica que Abril permitiu é a melhor forma de celebrar a Revolução dos Cravos e enfrentar os desafios do presente.

 
 
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Elísio Estanque