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11-10-2017        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

Em círculos académicos e em artigos de opinião nos grandes meios de comunicação tem sido frequentemente referido que estamos a entrar num período de reversão dos processos de globalização que dominaram a economia, a política, a cultura e as relações internacionais nos últimos cinquenta anos. Entende-se por globalização a intensificação de interacções transnacionais para além do que sempre foram as relações entre estados nacionais, as relações internacionais, ou as relações no interior dos impérios, tanto antigos como modernos. São interações que não são, em geral, protagonizadas pelos Estados, mas antes por agentes económicos e sociais nos mais diversos domínios. Quando são protagonizadas pelos Estados, visam cercear a soberania do Estado na regulação social, sejam os tratados de livre comércio, a integração regional, de que UE é um bom exemplo, ou a criação de agências financeiras multilaterais, tais como o Banco Mundial e o FMI.

Escrevendo há mais de vinte anos (Toward a New Common Sense, Nova Iorque: Routledge, 1995, com tradução em espanhol, Sociología jurídica crítica. Para un nuevo sentido común en el derecho, Madrid: Editorial Trotta, 2009, 290-453), dediquei ao tema muitas páginas e chamei a atenção para a complexidade e mesmo o carácter contraditório da realidade que se aglomerava sob o termo “globalização”. Primeiro, muito do que era considerado global tinha sido originalmente local ou nacional, do hamburger tipo MacDonalds, que tinha nascido numa pequena localidade do midwest dos EUA, ao estrelato cinematográfico, activamente produzido no início por Hollywood para rivalizar com as concepções do cinema francês e italiano que antes dominavam, ou ainda a democracia enquanto regime político globalmente legítimo, uma vez que o tipo de democracia globalizado foi a democracia liberal de matriz europeia e norte-americana e na versão neoliberal, mais norte-americana que europeia. Segundo, a globalização, ao contrário do que o nome sugeria, não eliminava as desigualdades sociais e as hierarquias entre os diferentes países ou regiões do mundo. Pelo contrário, tendia a fortalecê-las. Terceiro, a globalização produzia vítimas (normalmente ausentes dos discursos dos promotores da globalização) que teriam agora menor proteção do Estado, fossem elas trabalhadores industriais, camponeses, culturas nacionais ou locais, etc. Quarto, por causa da dinâmica da globalização, as vítimas ficavam ainda mais presas aos seus locais e na maioria dos casos só saíam deles forçadas (refugiados, deslocados internos e transfronteiriços) ou falsamente por vontade própria (emigrantes). Chamei a estes processos contraditórios globalismos localizados e localismos globalizados. Quinto, a resistência das vítimas beneficiava por vezes das novas condições tecnológicas tornadas disponíveis pela globalização hegemónica (transportes mais baratos, facilidades de circulação, internet, repertórios de narrativas potencialmente emancipatórias, como, por exemplo, os direitos humanos) e organizava-se em movimentos e organizações sociais transnacionais. Chamei a esses processos globalização contra-hegemónica e nela distingui o cosmopolitismo subalterno e o património comum da humanidade ou jus humanitatis. A mais visível manifestação deste tipo de globalização foi o Fórum Social Mundial, que se reuniu pela primeira vez em 2001 em Porto Alegre (Brasil) e do qual fui um participante muito activo desde a primeira hora.

Que há de novo e por que se diagnostica como desglobalização? As manifestações referidas são dinâmicas nacionais e subnacionais. Quanto às primeiras, salientam-se o Brexit pelo qual o Reino Unido (?) decidiu abandonar a UE e as políticas proteccionistas do Presidente dos EUA, Donald Trump, e a sua defesa do princípio da soberania, insurgindo-se contra os tratados internacionais (sobre o livre comércio ou a mudança climática), mandando erigir muros para proteger as fronteiras, envolvendo-se em guerras comerciais, entre outras, com o Canadá, a China e o México. Quanto às dinâmicas sub-nacionais, estamos em geral perante o questionamento das fronteiras nacionais que resultaram, em tempos e circunstâncias históricas muito distintas: as guerras europeias, desde a guerra dos 30 anos e consequente Tratado de Westfália (1648) até às do século XX que, devido ao colonialismo, se transformaram em mundiais, (1914-18 e 1939-45); a primeira (talvez segunda?) partilha de África na Conferência de Berlim (1884-85); as guerras de fronteiras nos novos Estados independentes da América Latina a partir do início do século XIX. Assiste-se à emergência ou reacendimento da afirmação de identidades nacionais ou religiosas em luta pela secessão ou autogoverno no interior de Estados, de facto, plurinacionais. Entre muitos exemplos: as lutas da Caxemira, da Irlanda do Norte, de várias nacionalidades no interior do Estado Espanhol, do Senegal, da Nigéria, da Somália, da Eritreia, da Etiópia e dos movimentos indígenas da América Latina. Há ainda o caso trágico do Estado ocupado da Palestina. Alguns destes processos parecem (provisoriamente?) terminados, por exemplo, a fragmentação dos Balcãs ou a divisão do Sudão. Outros mantêm-se latentes ou fora dos média (Quebeque, Escócia, Caxemira) e outros têm explodido de forma dramática nas últimas semanas, sobretudo os referendos na Catalunha e no Curdistão do Iraque e nos Camarões.

Em meu entender, estes fenómenos, longe de configurarem processos de desglobalização, constituem manifestações, como sempre contraditórias, de uma nova fase de globalização mais dramática, mais excludente e mais perigosa para a convivência democrática, se é que não implicam o fim desta. Alguns deles, contra as aparências, são afirmações da lógica hegemónica da nova fase, enquanto outros constituem uma intensificação da resistência a essa lógica. Antes de referir uns e outros, é importante contextualizá-los à luz das características subjacentes à nova fase de globalização. Se analisarmos os dados da globalização da economia, concluímos que a liberalização e a privatização da economia continua a intensificar-se com a orgia de tratados de livre comércio actualmente em curso. A UE acaba de acordar com o Canadá um vasto tratado de livre comércio, o qual, entre outras coisas, vai expor a alimentação dos europeus a produtos tóxicos proibidos na Europa mas permitidos no Canadá, um tratado cujo principal objectivo é pressionar os EUA a juntar-se. Foi já aprovada a Parceria Transpacífico, liderada pelos EUA, para enfrentar o seu principal rival, a China. E toda uma nova geração de tratados de livre comércio está em curso, negociados fora da OMC, sobre a liberalização e privatização de serviços que em muitos países hoje são públicos, como a saúde e a educação. Se analisarmos o sistema financeiro, verificamos que estamos perante o ramo do capital mais globalizado e mais imune às regulações nacionais[1]. Os dados que têm vindo a público são alarmantes: 28 empresas do sector financeiro controlam 50 trilhões de dólares, isto é, três quartos da riqueza mundial contabilizada (o PIB mundial é de 80 trilhões e além deles haverá 20 trilhões em paraísos fiscais). A esmagadora maioria dessas instituições está registada na América do Norte e na Europa. O seu poder tem ainda outra fonte: a rentabilidade do investimento produtivo (industrial) a nível mundial é, no máximo, de 2.5%, enquanto a do investimento financeiro pode ir a 7%. Trata-se de um sistema para o qual a soberania de 200 potenciais reguladores nacionais é irrelevante.

Perante isto, não me parece que estejamos perante um momento de desglobalização. Estamos antes perante novas manifestações da globalização, algumas delas bem perigosas e patológicas. O apelo ao princípio da soberania por parte do Presidente dos EUA é apenas o vincar das desigualdades entre países que a globalização neoliberal tem vindo a acentuar. Ao mesmo tempo que defende o princípio da soberania, Trump reserva-se o direito de invadir o Irão e a Coreia do Norte. Depois de terem destruído a relativa coerência da economia mexicana com o NAFTA e provocado a emigração, os EUA mandam construir um muro para a travar e pedem aos mexicanos que paguem a sua construção. Isto, para além de ordenarem deportações em massa. Em nenhum destes casos é pensável uma política igual, mas de sentido inverso. O princípio da soberania dominante surgira antes na UE com o modo como a Alemanha pôs os seus interesses soberanos (isto é, do Deutsche Bank) à frente dos interesses dos países do sul da Europa e da UE.

A soberania dominante, combinada com a auto-regulação global do capital financeiro, dá azo a fenómenos tão diversos quanto sub-financiamento dos sistemas públicos de saúde e educação, a precarização das relações laborais, a chamada crise dos refugiados, os Estados falhados, o descontrolo do aquecimento global, os nacionalismos conservadores. As resistências têm sinais políticos diferentes, mas assumem por vezes formas semelhantes, o que está na origem da chamada crise da distinção entre esquerda e direita. De facto, esta crise é o resultado de alguma esquerda ter aceitado a ortodoxia neoliberal dominada pelo capital financeiro e até se ter auto-flagelado com a ideia de que a defesa dos serviços públicos era populismo. O populismo é uma política de direita, particularmente quando a direita pode atribuí-la com êxito à esquerda. Residem aqui muitos dos problemas com que se defrontam os Estados nacionais. Incapazes de assegurar a proteção e o mínimo bem-estar dos cidadãos, respondem com repressão à legítima resistência dos cidadãos.

Acontece que a maioria desses Estados são, de facto, plurinacionais. Incluem povos de diferentes nacionalidades etnoculturais e linguísticas. Foram declarados nacionais pela imposição de uma nacionalidade sobre as outras, por vezes de modo bem violento. As primeiras vítimas desse nacionalismo interno arrogante, que quase sempre se traduziu em colonialismo interno, foram o povo andaluz depois da chamada Reconquista do Al-Ándalus, os povos indígenas das Américas e os povos africanos depois da partilha de África. Foram também eles os primeiros resistentes. Hoje, a resistência junta às raízes históricas o aumento da repressão e a endémica corrupção dos Estados dominados por forças conservadoras ao serviço do neoliberalismo global. Acresce que a paranoia da vigilância e segurança interna tem contribuído, sob o pretexto da luta contra o terrorismo, para o enfraquecimento da globalização contra-hegemónica dos movimentos sociais, dificultando os seus movimentos transfronteiriços. Por tudo isto, a globalização hegemónica aprofunda-se, usando, entre muitas outras máscaras, a da soberania dominante, que académicos desprevenidos e meios de comunicação cúmplices tomam por desglobalização.



[1] Pode consultar-se um dos textos mais recentes e mais incisivos sobre o capital de autoria do economista brasileiro Ladislau Dowbor, meu antigo colega na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra: A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta, São Paulo: Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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