Aqueles de nós que, como eu, têm a felicidade de poder trabalhar em escolas e centros de pesquisa onde se tem conseguido preservar o ambiente informal e uma boa dinâmica de trabalho, com elevados níveis de exigência mas no âmbito de culturas que valorizam a transparência e o espírito crítico, sabemos bem a importância decisiva do factor relacional e o incentivo que neles encontramos para continuar a nossa actividade de docentes e investigadores.
Porém, esta situação está longe de ser generalizável e a instituição universitária no seu conjunto não possui mecanismos suficientemente eficazes que estimulem a progressão na carreira e o reconhecimento do mérito e dedicação de cada um. Além disso, mesmo concordando que é um enorme privilégio podermos trabalhar numa actividade que nos dá prazer, isso não basta para que abdiquemos de exigir do sistema e das instâncias que o tutelam respostas adequadas aos actuais bloqueios com que ele se debate. Por outro lado, é bom lembrar que os problemas existentes ao nível da carreira académica e do ensino superior público não se resolvem apenas com novas medidas administrativas. Antes exigem o envolvimento e mobilização de todos, desde os órgãos de gestão das escolas e universidades ao conjunto dos docentes. Sem essa ampla participação não é possível construir a Universidade dinâmica, competitiva e democrática, à altura de poder cumprir a sua missão de motor do desenvolvimento das sociedades do século XXI.
A falta de estímulos
A asfixia existente nos quadros de professores é evidentemente um factor de enorme apreensão para muitos docentes, em particular para as gerações mais jovens de assistentes e professores auxiliares que hoje se debatem com a impossibilidade de prosseguir as suas carreiras, perante o estrangulamento generalizado das vagas ao nível da categoria de professor associado e no acesso ao estatuto de nomeação definitiva. É escandaloso que ao fim de anos e anos de serviço e após sucessivas provas públicas de avaliação, um professor universitário permaneça em regime contratual precário e é uma injustiça gritante e inconstitucional que se defraudem as suas legítimas expectativas de progressão na carreira. Nestas condições, que estímulos poderemos sentir para prosseguir com empenho o nosso trabalho? Para além do estatuto prestigiado de que goza a profissão, que recompensas efectivas recebemos da nossa dedicação?
Ao lado destas, outras interrogações podem colocar-se que se ligam não só ao actual bloqueio das carreiras mas também a aspectos reveladores da distorção meritocrática que o sistema alimenta. O investimento no trabalho de investigação, maior ou menor, as prestações e participação em programas de pós-graduação, a ocupação de cargos de gestão e coordenação ou em actividades de extensão devem ser premiados e institucionalmente reconhecidos ou continuar a depender do voluntarismo de cada um? As cargas horárias, o acompanhamento dos alunos, a oferta de disciplinas de opção, a orientação de trabalhos e teses, os resultados obtidos no sucesso escolar dos estudantes, etc., não deveriam ser mais claramente contemplados como indicadores de mérito? Outras áreas de intervenção poderiam aqui ser referidas, nomeadamente a participação em redes internacionais e a promoção de programas que envolvam actores da sociedade civil e da vida empresarial, como iniciativas de dinamização da vida universitária que devem ser estimuladas e reconhecidas.
É certo que todas estas actividades fazem parte dos deveres do docente e são sem dúvida ponderados na apreciação curricular por parte de júris independentes nas provas que se prestam ao longo da carreira. Mas a questão é que, se isso é assim em termos formais, o modo como o sistema de ensino superior e a comunidade académica se desenvolveram em Portugal contêm variados elementos, inclusive de natureza social, que distorcem amplamente o seu funcionamento em bases coerentes.
Segmentação geracional
E aqui retomo a questão das carreiras. Diria que há hoje uma "geração estabelecida" e outra que luta pela afirmação e reconhecimento institucional. Obviamente que isto é uma simplificação, pois a vida académica e o sistema no seu todo encerram uma grande complexidade*. Mas este é um ponto que me parece consensual. O modo como se deu o extraordinário crescimento do ensino superior no nosso país, sobretudo após a institucionalização da democracia, traduziu-se no recrutamento de um conjunto de docentes desta "primeira geração" (chamemo-lhe assim) que acederam à carreira numa conjuntura de rápida expansão do sistema de ensino, alcançando facilmente – e praticamente sem concorrência – os lugares de assistente e de professor, realizando rapidamente as suas provas ou em certos casos prescindindo delas (no caso dos assistentes estagiários, que até aos anos oitenta não eram obrigados a fazer provas para a categoria de assistente) e seguindo para doutoramento com o devido apoio e estimulo das escolas, que então se viam a braços com a escassez de recursos. Noutros casos, os colegas desta geração entraram no sistema já com o doutoramento (em geral feito no estrangeiro) e rapidamente ocuparam posições institucionais sólidas. À parte daqueles que ficaram pelo caminho, é esta geração que, grosso modo, hoje ocupa as vagas de professores associados e de catedráticos nos quadros de professores das faculdades e institutos do ensino superior público.
A questão é que o panorama se alterou abruptamente na última década. Com a estabilização do crescimento do sistema, e actualmente com a escassez de procura em muitos dos cursos e escolas criadas nos anos oitenta, alguns começaram a encerrar e por isso muitos docentes – da "segunda geração" – viram os seus contratos rescindidos, outros confrontam-se com esse risco e ou com o bloqueio à progressão na carreira.
É claro que não é meu objectivo tecer aqui qualquer tipo de acusação à chamada geração estabelecida. Trata-se antes de uma realidade que resulta dos efeitos directos do natural processo de expansão de uma universidade extremamente atrofiada há trinta anos atrás. É importante, por isso, reconhecer, e enaltecer, o trabalho de dinamização e de liderança que muitos dos actuais catedráticos desempenharam ao longo destes anos, por vezes lutando contra enormes obstáculos para promover as instituições que ajudaram a criar e a consolidar. Mas, como sabemos, a excelência e o dinamismo convivem lado a lado com a mediania e a estagnação, e há ainda demasiados mecanismos que nos empurram para a defesa do status quo.
O inbreeding e as lógicas de poder
A indiferença e aparente desinteresse com que os órgãos de decisão encaram a situação prende-se com a forma como o sistema académico se estruturou, criando uma lógica de inbreeding que corrói as instituições académicas e alimenta todo um conjunto de poderes que aniquilam o critério da meritocracia.
É sabido que o alargamento dos quadros é da competência do Ministério do Ensino Superior, mas, nos casos em que o quadro de professores associados está esgotado havendo, no entanto, vagas por preencher nos lugares de catedrático, só ocupando estas poderão disponibilizar-se aquelas, e só com o conjunto das vagas preenchidas a instituição poderá reclamar o alargamento dos quadros (pelo menos de acordo com o actual enquadramento legal). Ora, o que acontece é que as escolas que se encontram nesta situação deveriam tomar medidas no sentido de estimular fortemente a apresentação a provas de agregação, em especial por parte dos actuais professores associados, por forma a ocuparem rapidamente as categorias de topo, libertando vagas para a nova geração de doutores, ou, nos casos em que os quadros estejam completamente tapados, estimular também os professores auxiliares a realizar essas mesmas provas.
Em algumas escolas isto já se faz e é sem dúvida uma boa forma de incentivo à segunda geração de que falei, além do mais porque por essa via se poderia reforçar a pressão reivindicativa pelo alargamento dos quadros (ou exigindo os quadros de dotação global por que os sindicatos vêm lutando sem êxito). Mas a maioria das escolas e universidades não o faz, parecendo acomodadas e indiferentes às justas expectativas das gerações mais jovens do corpo docente. Assim, se os mais novos não sentem as suas legítimas ambições reconhecidas pela instituição, é natural que duvidem da bondade dos padrões de exigência que agora lhes são impostos, quando os seus proponentes nunca tiveram de os cumprir. Daí a inevitável leitura quanto à existência de segmentos com interesses distintos, sendo que apenas um deles detém o poder académico.
Aparentemente, sendo a carreira pautada pela avaliação do mérito, depende da iniciativa do assistente ou do professor requerer provas académicas, desde que esteja em condições de elegibilidade. Mas, na prática, a iniciativa individual é inibida, quer por um genuíno respeito pela antiguidade dos mais velhos quer porque se pode correr o risco de se ser julgado por excesso de ambição ou arrogância. Regra geral espera-se que o incentivo parta do catedrático com quem se trabalha ou da instituição. Aliás, há nas universidades e no ensino superior português (como, de resto, em muitas outras áreas profissionais) uma vocação tutelar, que decorre de factores culturais e históricos, promotora de imensas teias de lealdades, alianças e lógicas de poder, que estiolam as instituições ou as impedem de progredir.
Note-se que considero a lealdade profissional e os ambientes de proximidade pessoal, que suportam as dinâmicas de grupo, componentes essenciais para o bom funcionamento das equipas em qualquer universidade do mundo. Como disse no início, estes são factores decisivos que proporcionam confiança, estímulo e reconhecimento, aspectos vitais para a identidade e dinâmica das instituições. Todavia, o que acontece é que, ao lado dos exemplos de boas práticas, impera no nosso sistema uma multiplicidade de ligações perversas, de cumplicidades servis, de carreirismos e lealdades incondicionais que muitas vezes são promovidas por interesses mesquinhos, por desejo obstinado de protagonismo e poder, por necessidades insaciáveis de bajulação ou por puro oportunismo.
Logo no acto de recrutamento dum novo docente, posicionam-se os detentores do poder para repartir entre si os candidatos que, obedecendo aos requisitos formais, oferecem mais garantias de obediência. O critério do mérito é levado em conta, mas muitas vezes o nível de exigência é reduzido ao mínimo, contando a partir daí os factores pessoais e as apreciações subjectivas, que em geral se sobrepõem às outras. Depois, o escolhido fica a saber com quem vai trabalhar e dá inicio ao processo de estudo dos jogos de alianças que vigoram no departamento. A partir daí começa a tecer a sua rede de cumplicidades, procurando sempre estar de acordo com o seu "chefe" e disponibilizar-se totalmente para as solicitações que este lhe pedir. Entra-se então num jogo em que fica difícil distinguir os deveres para com a instituição e os deveres para com o superior, que supostamente o irá tutelar ao longo da carreira.
Bloqueios e estratégias pessoais
Esta atitude é deliberadamente alimentada pelo detentor da posição de autoridade, ao mesmo tempo protegendo o seu subordinado e, não poucas vezes, explorando o seu trabalho em benefício próprio. Assinar papers escritos pelos mais jovens ou servir-se destes recursos para consolidar redes estabelecidas, são hábitos correntes que – intencionalmente ou não – confundem os interesses institucionais com as estratégias e agendas pessoais. A coberto dos interesses da instituição, este tipo de práticas minam a capacidade crítica e condicionam a liberdade científica de muitos jovens docentes e investigadores universitários. Cria-se assim todo um clima de dependências em que a discussão aberta e frontal é substituída por constantes jogos de cintura, onde na luta de bastidores que ocorre entre graduados rivais, os jovens "súbditos" servem de joguete. Em tais condições não pode haver espírito crítico nem uma salutar irreverência intelectual.
Este tipo de situações não é evidentemente generalizável, mas há muitos casos conhecidos de violência psicológica, de perseguição, de rivalidades enraizadas, que se escondem por detrás do verniz polido que caracteriza as relações académicas. Eles constituem o reverso de um sistema onde proliferam ambientes em que o debate científico franco é cada vez mais raro, onde reina a mediania e falta de ambição, onde os grupos e categorias parecem cada vez mais fechados na defesa das suas próprias posições corporativas. Por isso, a promoção de iniciativas como a abertura ao exterior, a internacionalização, o diálogo com as empresas, instituições, movimentos da sociedade civil e a promoção da cidadania e do desenvolvimento social e cultural são ainda, em boa medida, uma miragem entre nós.
Em suma, as oportunidades de carreira e a promoção do mérito são indissociáveis de um amplo esforço de revigoramento e dinamização da vida universitária, que consolide e estimule a qualidade das equipas e premeie o talento e a liberdade individual. E isso não se consegue unicamente com a implementação de Bolonha e a regularização periódica das avaliações exteriores. A pequena dimensão da nossa comunidade académica e o interconhecimento e ligações pessoais entre departamentos de áreas congéneres, a par das rivalidades endógenas entre si, dificultam drasticamente a institucionalização de uma competitividade saudável e de avaliações rigorosas e objectivas.
A alteração deste cenário terá certamente de partir de cima, a começar pelo próprio governo, mas o processo só terá sucesso se for convenientemente negociado. Ou seja, os problemas e vícios que assinalei só podem ser combatidos na sequência de uma discussão franca e aberta aos mais diversos níveis, desde o departamental ou de grupo às estruturas interuniversitárias, e envolvendo evidentemente os sindicatos e o Ministério. É por isso urgente que as instâncias universitárias e o novo governo, promovam um debate sério e alargado sobre estas matérias, em vez de se pensar que as orientações de Bolonha podem servir de panaceia para resolver todos os problemas do sistema. Em vez de se querer impor administrativamente os princípios bolonheses (por razões políticas ou orçamentais), esperemos que os futuros responsáveis governamentais tenham a sensatez de envolver as universidades e os seus professores nessa reflexão para que em conjunto se possam encontrar as soluções adequadas.
* Provavelmente não teremos apenas duas gerações, pois, muitos dos professores que actualmente se aproximam da idade da reforma são na verdade de outra geração, enquanto, por outro lado, aqueles que só recentemente iniciaram a carreira estarão ainda noutra condição: porventura a daqueles que já não têm sequer expectativas de nada. O simplismo é, portanto, intencional, e assume-se o carácter polémico do argumento.