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27-04-2006        Campeão das Províncias
(texto adaptado da Entrevista à Revista Sábado)

Como sabemos, com a institucionalização democrática (1974) e a entrada na Comunidade Europeia (1986) Portugal iniciou uma nova etapa na via da modernização do país, procurando ao mesmo tempo aproximar-se dos padrões europeus de desenvolvimento e reduzir as gritantes desigualdades e injustiças sociais para que as nossas elites nos remeteram ao longo dos séculos. Com o fim do Estado Novo e a integração no pelotão dos países desenvolvidos da Europa teremos nós conseguido reduzir substancialmente essas desigualdades? Haverá hoje mais igualdade de oportunidades? Quais os principais contornos do actual processo de mudança social no que diz respeito à estratificação social e à renovação das elites na sociedade portuguesa?
Ao longo do século XX assistiu-se nas sociedades industrializadas a uma evolução da estrutura das classes sociais em que, em vez dos muito poucos no topo e a esmagadora maioria do povo na base, cresceram a pouco e pouco as camadas intermédias. No caso português estas alterações estruturais verificaram-se apenas a partir da fase final do salazarismo, e sobretudo após a Revolução do 25 de Abril de 1974. Até então, a burguesia agrária e alguns sectores protegidos pelo Estado Novo (como o clero, as altas patentes militares, os dirigentes políticos e da administração pública, etc) monopolizavam todo o prestígio, poder e riqueza. A industrialização expandiu-se tardiamente e, por isso, o crescimento das classes trabalhadoras urbanas – primeiro o operariado e mais tarde os funcionários do terciário – só nos anos 70 tiveram o seu primeiro grande impulso em Portugal. Com a instauração da democracia em 1974, a classe média urbana avançou rapidamente – apesar de estatisticamente ser ainda débil –, associada ao crescimento do Estado Providência, ao mesmo tempo que, a partir de finais dessa década, começou a notar-se uma tendência de estagnação (ou mesmo de redução) do operariado industrial, a qual se tem acentuado nos últimos anos.
Porém, este movimento de recomposição não significou uma aproximação real entre o topo e a base da pirâmide social. Pelo contrário: embora os trabalhadores, e a classe baixa em geral, melhorassem em termos reais as suas condições de vida, se compararmos a situação actual com a generalizada miséria de há 30 anos, o certo é que as elites – os sectores mais privilegiados da classe alta – também subiram e em muitos casos distanciaram-se ainda mais dos níveis de vida das classes média e baixa. Cresce a "classe média", mas ao mesmo tempo torna-se internamente diferenciada e cada vez mais instável. Uns estratos sobem outros descem e proletarizam-se, enquanto a classe trabalhadora manual luta desesperadamente para se manter "incluída", isto é, tenta defender o emprego. A importância da classe média, em Portugal, mede-se mais pelo seu papel enquanto referência simbólica no imaginário colectivo, do que por ser um segmento social consistente e dotado de índices elevados de bem-estar. Caracteriza-se por ser frágil e por ser cada vez mais instável e internamente segmentada.
Há muito que as ciências sociais observaram na vida social moderna a força do impulso que leva os indivíduos a procurar a diferenciação. Diferenciação conduzida individualmente mas suportada por identificações colectivas com sectores sociais particulares. Sobretudo aqueles que conseguiram "descolar" da condição mais baixa esforçam-se por obter para si e para os seus descendentes uma posição (estatuto) de privilégio. Isto acontece sobretudo entre as camadas privilegiadas das classes média e alta. É certo que o nível educacional que se consegue alcançar (o diploma) constitui hoje um factor decisivo, que favorece a mobilidade social. Mas, só aparentemente o título académico é um factor nivelador. As pessoas oriundas de diferentes origens sociais, quando conseguem frequentar as mesmas universidades e os mesmos programas de mestrado ou doutoramento (por exemplo), partilham interesses intelectuais comuns, e tudo isso facilita a mobilidade social ascendente, nomeadamente através de casamentos interclassistas. Porém, essa abertura das fronteiras de classe não é generalizável. O próprio acesso aos diplomas académicos mais elevados e exigentes obedece também a uma lógica selectiva. Logo, é fortemente condicionado pela classe de nascença (especialmente pelo volume de recursos económicos e educacionais dos próprios pais). Os graus de licenciatura, por exemplo, vêm perdendo valor distintivo à medida que o título de "Dr" se banaliza. A tendência será para que as famílias das elites pressionem e criem condições para que os seus filhos alcancem graus académicos mais avançados e frequentem escolas mais exigentes (e mais caras!). Esta é uma forma de criar novas e sucessivas barreiras, de modo a que atravessá-las seja sempre mais difícil, pois, os critérios de selecção pautam-se pela obediência aos valores definidos pelas próprias elites e adequados aos seus interesses específicos. Criam-se, assim, espaços e estilos de vida restritos e exclusivos, que se fecham aos que estão de fora: em especial àqueles que – sendo embora parte da classe média – têm raízes nas classes mais baixas. De facto, quanto mais nos aproximamos dos estratos sociais do topo mais difícil se torna aceder ao escalão seguinte. Ou seja, o crivo da selectividade vai-se apertando à medida que subimos cada degrau da hierarquia da estratificação.
Segundo estudos recentes do Eurostat e do PNUD (Nações Unidas), Portugal é dos países europeus onde a desigualdade social é maior. Além disso, a diferença entre a camada mais rica e a mais pobre tem vindo a aumentar. Em 1995 a diferença era de 7,4 vezes maior rendimento para os 20% mais ricos (em comparação com os 20% mais pobres); em 2000 baixou para um diferencial de 6,4 vezes; e em 2003 voltou a agravar-se para 7,4 vezes a favor dos mais ricos. Os elevados valores da desigualdade (medida pelo índice de Gini), colocam Portugal próximo de países como a Tanzânia e Moçambique, além de que cerca de 20% da população vive ainda no limiar da pobreza, aumentado as bolsas de exclusão, a precariedade no emprego e o sobre-endividamento das famílias.
Assim, pode dizer-se que o princípio da "meritocracia" que as sociedades ocidentais tanto invocam, ainda não funciona ou funciona escassamente em Portugal. Em vez disso, funciona a chamada "cunha" e uma mentalidade algo anacrónica, marcada por traços de servilismo e pelo medo do poder. Daí deriva também a falta de autonomia e de sentido de risco dos portugueses, o que contribui para que os nossos níveis de desenvolvimento e de competitividade sejam ainda tão incipientes em comparação com os países europeus mais avançados. Estas tendências encontram-se, por assim dizer, inscritas no "código genético" da nossa própria cultura e história. Mas é fundamental não esquecer que a modernização do país exige políticas em que o esforço de desenvolvimento e o aumento da competitividade tenham como contraponto o persistente combate às desigualdades e injustiças sociais.

 
 
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Elísio Estanque