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18-05-2006        Diário de Coimbra
Era suposto os congressos partidários serem o culminar de uma discussão colectiva interna, destinada a questionar e se possível actualizar o pensamento estratégico do Partido. Era suposto que no âmbito do congresso o debate aberto e o confronto de opiniões fossem permanentemente estimulados. Era suposto que os valores e princípios ideológicos, bem como o respeito e a cordialidade entre companheiros ou camaradas do mesmo partido, fossem mais fortes do que as divergências pontuais. Era suposto que um congresso partidário se dedicasse, antes do mais, a fazer a análise dos resultados obtidos e daí se retirassem as devidas consequências. Era suposto, enfim, que houvesse discussões – mais ou menos acaloradas – em torno das ideias, das diferentes propostas (chame-se-lhes moções) que se apresentam e que visam diferentes caminhos e perspectivas para promover os objectivos políticos do partido.
Era suposto ser assim e é assim numa democracia avançada... Mas não em Portugal! Aliás, a vida interna dos partidos é, como não podia deixar de ser, o reflexo do próprio país. E portanto, se o país não funciona porque é que os partidos haveriam de funcionar? Ou melhor, eles funcionam. Funcionam é duma maneira de tal forma perversa que, a continuarmos assim, estaremos não tardará muito a pedir outra "solução" ditatorial. Funcionam de modo a contribuir para que objectivamente daqui a pouco ninguém possa sequer ouvir mais falar de partidos políticos, quanto mais ouvir os seus líderes ou porta-vozes!
Participei recentemente num desses congressos partidários (neste caso, de âmbito distrital). Porque faço parte desse pequeno grupo de ingénuos que até há pouco ainda acreditava na possibilidade de reforma dos partidos. De facto, a decepção desta experiência só não foi maior porque as expectativas que levava eram as mais baixas. A coisa começa mais ou menos assim: os delegados chegam ao átrio do anfiteatro onde o evento vai ocorrer, em tempos desfasados, mas na sua maioria bastante atrasados. O atraso cresce na mesma proporção da auto-importância a que cada um se atribui a si próprio no espaço do partido ou pensa ser julgado pelos seus correligionários. Em geral o congresso começa cerca de uma hora após o momento anunciado (no mínimo). Logo aqui se vê a semelhança com o país...
Alinham-se depois as diferentes "claques", posicionando-se em zonas estrategicamente pensadas para melhor responder à aclamação do respectivo "chefe" local ou concelhio. Quando começam as intervenções – em princípio começa o líder cessante, que em princípio é também o novo líder eleito... – os delegados sentados na zona frontal precipitam-se nas palmas e não descuram o constante acenar de cabeça à medida que sobe o tom das palavras e a firmeza da sua indignação perante os seus putativos detractores. A ala dos adversários (da minoria) posiciona-se em geral numa zona mais distante e periférica em relação ao palco principal deste teatro. Terminada a primeira intervenção "de fôlego" – e na altura em que verdadeiramente era suposto começar a discussão – levanta-se uma boa parte dos congressistas, em particular os mais aficionados da maioria, para fumar o primeiro cigarro e dar as primeiras palmadas cúmplices nas costas do tutor ou do súbdito mais chegado.
Naturalmente que a componente simbólica e ritualista é importante num acontecimento como este. Afinal um congresso serve também para a reunificação das bases e dos quadros com as lideranças eleitas e as novas propostas aprovadas. Um congresso serve também para que na intensidade do debate se reforcem as convicções e galvanizem as adesões à estratégia do partido. Reconheço, portanto, a importância do ritual e do seu simbolismo para expiar as fraquezas, derrotas e frustrações anteriores. O que é mais preocupante é quanto os comportamentos ritualistas não deixam transparecer qualquer substância no plano dos valores e da acção política.
Observar por dentro o funcionamento do partido (designadamente no contexto de um congresso) ajudou-me a confirmar a crescente perversão da actividade partidária e a perceber o risco que corremos de, no médio ou longo prazo, se aniquilar por completo a vida democrática, caso não surja uma onda renovadora das instituições e um novo impulso de cidadania. Se isso acontecer, estou em crer que é mais provável que venha de fora do que do interior dos partidos. O aparelhismo é um facto e a absoluta ausência de debate ideológico uma preocupação angustiante para um cidadão democrata. (continua)

 
 
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Elísio Estanque