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25-05-2006        Diário de Coimbra
O calor das intervenções e dos aplausos não depende da importância das ideias, nem da sua clareza, menos ainda da força dos argumentos. Depende sim, do maior ou menor grau de virulência. Ou seja, quanto mais "sangue" jorrar da intervenção, maior é o seu efeito mobilizador das hostes. De preferência se o ataque em questão for abertamente de índole pessoal. Aliás, como se sabe, a polémica e o debate democrático sempre escassearam no nosso país. O que vinga é o discurso de vitimização do próprio e diabolização do adversário.
Antes, estas práticas tinham como efeito um revigoramento da ideologia e uma clarificação dos programas e estratégias de acção, mas hoje, a situação mudou radicalmente. Numa sociedade mediatizada, a vertente de "encenação" é decisiva e a vida partidária é reflexo disso. Porém, o que é hoje mais difícil de aceitar é que o ritualismo se tenha tornado mera "espuma", sem réstia de substância. Trata-se de uma encenação do vazio. Evita-se a polémica frontal. Em vez de se assumirem, primeiro, as diferenças para daí se construir o consenso e a união, o impulso colectivo do auditório parece pretender logo a unanimidade. Em vez da dúvida e da reflexão aberta, as "massas" são impelidas por "certezas". Há como que um "efeito de multidão" que as empurra para a canonização imediata do líder.
É claro que as ideologias não morreram. E a renovação do pensamento de esquerda neste início de século é urgente. Existem no seio dos partidos propostas diferentes e visões opostas, por exemplo, quanto à organização da sociedade, quanto à ideia de democracia, ou ao papel do Estado e do mercado na economia. Mas esse debate não chega às bases dos partidos, menos ainda dos chamados partidos "de poder". Para a maioria dos militantes – principalmente ao nível das estruturas locais, das concelhias ou das distritais – "ideologia" é um conceito ausente. A única ideologia que conhecem é a adesão incondicional à demagogia do mais poderoso, ou seja, daquele que directamente o tutela e lhe formata a consciência. Impera uma "política dos interesses" instalados, que está a corroer e a matar a "política das causas". É ela que prevalece nos grandes partidos e está a asfixiá-los.
O que alimenta as suas estruturas é, de um lado, os interesses submissos de quem se verga perante o pequeno rebuçado que lhe foi oferecido pelo "líder" mais próximo; e do outro lado, os interesses mesquinhos de quem se usa do fraco para o instrumentalizar a partir de promessas vãs. O pequeno favor, o entreabrir da porta dum emprego estável, o encontrar do fiador para o empréstimo, o recrutamento para a empresa X do filho ou da sobrinha, a promessa de promoção acompanhada da habitual palmadinha nas costas, a "carta de recomendação" que se entrega ao responsável do serviço público Y, etc., etc.
Estas são algumas formas de "microtráfico" de influências e favores (somos o país da "cunha"...), que objectivamente funcionam para servir os interesses de alguns, através da máquina partidária. E assim, em vez da ideologia política (que já ninguém sabe o que é), em vez do confronto de opiniões e troca de argumentos (que muito poucos assumem frontalmente), o que é imperioso para se ter sucesso é olear permanentemente as redes sociais, as relações de compadrio, as teias de cumplicidades e os seguidismos irracionais. Importa sublinhar que os aspectos aqui referidos não são, claro está, exclusivos dos partidos. Antes obedecem a condicionantes sociais, forças e poderes relacionais, processos de estruturação que atravessam toda a sociedade.
Era suposto que os partidos políticos – em particular os de esquerda – exprimissem uma visão estratégica que a sociedade civil, por si só, não tem condições para promover. Demitindo-se dessa missão, deixam em aberto o espaço do populismo. Não devemos atacar os partidos para enfraquecer a democracia, mas sim renovar os partidos para revigorá-la. Os piores inimigos da actividade partidária são aqueles que no seu interior confundem a reflexão aberta e o espírito crítico com a actividade conspirativa e a acção anti-partidos. Por isso cabe perguntar: será que eles ainda são renováveis? A força burocrática dos aparelhos e a ausência de iniciativas consistentes, faz-nos duvidar. O seu crescente autismo e o notório divórcio em relação aos cidadãos faz pensar que as hipóteses de renovação sejam escassas. No actual contexto sociopolítico acredito que a renovação dos partidos, a ocorrer, depende em boa medida do papel que o associativismo e os movimentos sociais – de âmbito local e global – venham a protagonizar nos próximos tempos em Portugal e na Europa.

 
 
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Elísio Estanque