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24-08-2006        Jornal de Noticias
Cuba voltou a atrair as atenções. No mundo conturbado em que vivemos, sempre que se coloca a questão da possível saída de cena do líder histórico da revolução cubana, o problema da "transição" é chamado ao centro da discussão pública, sobretudo pela esquerda, hoje desencantada e sem referências.
O recente artigo de Boaventura de Sousa Santos (Visão, 17/08/2006) revela uma posição que, apesar de alguma ambiguidade – com nuances como a referência às "promessas não cumpridas da revolução" – contemporiza, diria mesmo que simpatiza, com o regime cubano e relativiza o carácter ditatorial da liderança de Castro. E aí reside a minha discordância. Há neste texto de BSS passagens surpreendentes para quem, como eu, partilha muitos dos seus ideais e para quem se recorde das suas posições críticas da ortodoxia comunista. Concordo que Cuba suscita "perplexidade" para alguns, e "fascínio" para outros. Mas enquanto BSS se mostra fascinado, eu, mais do que perplexo, faço parte dos cépticos.
Perplexidade foi também o que senti ao ler que a revolução cubana foi "um dos acontecimentos mais notáveis da segunda metade do século XX (...), uma luz de esperança para milhões de latino-americanos oprimidos e explorados". Não nego isso. Mas também a China de Mao e a União Soviética, simbolizaram para milhões o "paraíso na terra", e Estaline foi até celebrizado como "o pai dos povos". E daí?... A perseguição e prisão de milhares de activistas, jornalistas e dissidentes cubanos têm sido abundantemente denunciados em todo o mundo, e os testemunhos de grandes intelectuais de todos os quadrantes ideológicos há muito mostraram o tipo de sistema que vigora em Cuba (o próprio Che Guevara chegou a criticar, após o seu afastamento, o culto da personalidade promovido por Fidel).
Obviamente que o boicote generalizado que os EUA impuseram a Cuba teve e tem efeitos devastadores sobre a débil economia cubana, mas os custos do embargo e a resistência económica pós-soviética são apenas a justificação oficial para todos os problemas do país. Por outro lado, apesar de BSS se referir também ao "endurecimento ideológico" do regime, não retira daí as devidas consequências. Como se isso fosse uma questão menor. Além disso, mais do que a existência de "traços do período pré-revolucionário" importa saber os problemas gerados pelo próprio regime castrista. Para mim, a pobreza e a falta de liberdade são, acima de tudo, resultado da perversidade do sistema. Um sistema ditatorial de inspiração comunista, com as suas especificidades culturais e históricas próprias, e as particularidades carismáticas do seu líder. Num quadro em que a democracia não existe e os direitos humanos são diariamente agredidos, a imprensa manipulada pelo governo e os (poucos) utilizadores da Internet sujeitos a apertado controlo, qual o real significado do "bom" funcionamento dos sistemas de saúde e de educação?...
Quando, em Fevereiro passado, estive em Havana durante uma semana (num congresso sobre «Universidad 2006 – La Universalización de la Universidad por un mundo mejor»), tive o privilégio de observar alguns dos paradoxos da sociedade cubana. De um lado, os longos discursos oficiais a emular a revolução e o seu líder, a glorificar o sucesso do sistema educativo (aplaudidos por Fidel, que lá estava em pessoa, na sessão inaugural), a resistência ao embargo, etc, etc. De outro lado, o contacto diário com os bairros pobres, as ruas esburacadas, as casas a cair e o povo carente. A ansiosa procura do turista em busca da esperada "recompensa" monetária, a oferta sexual por parte das meninas que rodeiam os hotéis, o relato de alguém que pagava uma prestação ao quadro partidário que lhe arranjou um emprego melhor, as infinitas bichas para o pão e produtos racionados à porta das "bodegas" do povo, etc, etc. Este contraste foi chocante. E para mim reflecte o contraste entre o socialismo tal como é pintado pelo regime e a dura realidade da vida do povo.
Não posso, pois, subscrever qualquer solução de continuidade, nem mesmo o "aprofundamento" da revolução. Ninguém sabe o que irá seguir-se. De facto, as máfias e o mercado selvagem já espreitam, de fora e de dentro... Pessoalmente, prefiro uma solução democrática, isto é, uma solução que garanta independência, bem-estar, desenvolvimento e liberdade política para Cuba.

 
 
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Elísio Estanque