Uma sociedade desenvolvida exige que a ignorância, a provocação e o disparate sejam ativamente combatidos, valorizando-se a democracia, o rigor, a justiça, a solidariedade, o direito ao sonho e as condições propiciadoras de vida digna para todos. Durante a última semana assistimos a um chorrilho de pronunciamentos agoirentos e retrógrados.
Reapareceu em cena um ex-presidente da República absolutamente azedado, negando o valor e a força das ideias para a interpretação do Mundo e para determinação dos caminhos que, em cada tempo, a sociedade pode seguir e, qualificando, com uma ligeireza de análise que o desqualifica, de "revolução socialista" o programa do atual Governo que, no fundamental, sempre se alinhou com a agenda europeia, introduzindo pequenos travões à austeridade e ao absolutismo neoliberal. Que enorme disparate!
Presenciámos uma forte tentativa mediática de criminalização do exercício de um direito dos trabalhadores, a greve, que faz parte do normal funcionamento da democracia: em múltiplos artigos e opiniões surgiu uma conceção de sociedade que pura e simplesmente aliena os trabalhadores da sua construção. Querem os trabalhadores responsabilizados por todas as imaginárias desgraças. Sem o mínimo de rigor diz-se, em exercício masoquista, que há o perigo de acontecer com a Autoeuropa o mesmo que aconteceu com a Opel na Azambuja. Porque acompanhei de perto esse processo e fui ator com acesso a múltiplas fontes, posso dizer que me chegou, com alguma antecedência, a informação de fonte muito qualificada, de que a deslocalização estava decidida e havia um gestor com essa missão. O comportamento que os trabalhadores aí assumiram pode ser considerado mais ou menos assertivo, mas não foi seguramente a causa da deslocalização. Os disparates argumentativos de uma ex-governante, que na última sessão legislativa quase perdia o mandato por faltas não justificadas, chegam ao desplante de culpar os sindicatos por estarem na empresa e dizer que a greve na Autoeuropa é o "preço que António Costa impõe ao país".
Os trabalhadores da Autoeuropa, que têm provas dadas quanto à sua maturidade e capacidade produtiva e tomam as suas decisões de forma participada e democrática, foram tratados como se de um momento para o outro tivessem ensandecido. Políticos de Direita e "analistas" exacerbam as hipotéticas tensões partidárias, mas não colocam a hipótese de as causas e a expressão do conflito ali surgido terem origem em propostas e na condução do processo por parte da Administração, que chocam com o tipo de relações laborais e de valorização do trabalho que o modelo instituído pressupunha. Com honrosas exceções, onde se conta o JN da passada quinta-feira, não se escutam as opiniões dos trabalhadores, nem se fazem observações atentas ao que está para além da espuma.
Não se atribua à Administração da Autoeuropa e ao Grupo Volkswagen objetivos e intenções que não merecem. Até agora, tudo indica que o Grupo - que tem sido apoiado e acarinhado pelos diversos governos e pelo Estado português, e deve continuar a sê-lo - prosseguirá em Portugal com futuro. O conflito laboral é intrínseco à vida das empresas e bem gerido é dinâmico.
Partilho a afirmação de que os trabalhadores não são, pela sua condição, portadores absolutos da razão, mas enoja-me ver escribas, opinadores e políticos pegarem na agenda mais imediata da Administração da empresa - que tem o direito de a ter e saber fazê-la passar - e atribuir-lhe absoluta bondade.
Num contexto europeu com a agenda Macron entusiasticamente apoiada por grandes grupos e interesses europeus dominantes, as consequências do que se passa na Autoeuropa transbordam bem para lá da sua realidade. No Portugal pós-troika e pós-reforma laboral imposta pelos credores externos, joga-se o tipo de sociedade que queremos. Queremos que os tempos de descanso colectivo sejam destruídos? Queremos ainda mais desvalorização do trabalho? Queremos a degradação dos laços sociais que nos unem? Estas são, para os trabalhadores e empresários responsáveis, algumas questões sensíveis sobre o futuro do trabalho.
Sejamos críticos quanto necessário, mas solidários com quem sacrifica dias de salário pelo bem comum.