06-02-2008 Le monde Diplomatique
Perante as convulsões que o mundo do trabalho tem vindo a sofrer e face ao crescente ataque ao sindicalismo por parte de governos e patrões do mundo inteiro, importa realçar o significado histórico e social do movimento sindical, e reflectir criticamente – com objectividade, mas assumindo uma perspectiva de esquerda e politicamente empenhada – sobre os problemas e desafios da acção sindical hoje, tendo presente o papel fundamental dos sindicatos no conjunto da sociedade, designadamente no contexto europeu e português. É esse o objectivo deste texto.
Do movimento operário ao Estado Providência
O movimento operário emergiu, como se sabe, na sequência de um conjunto de convulsões que marcaram a Europa da era moderna. Foram as duras condições impostas pelo capitalismo selvagem do século XIX que fizeram emergir o operariado como classe. A classe operária (a inglesa, que serviu de modelo) não surgiu, como por vezes se pensa, animada fundamentalmente por objectivos progressistas, revolucionários ou emancipatórios mas, em boa medida, a partir de lutas desencadeadas em nome da defesa da comunidade e muitas vezes contra a inovação técnica, como foi o caso do movimento ludista.
Porém, nem a resistência dos trabalhadores à inovação e ao progresso técnico nem a acção reivindicativa são suficientes para que estejamos perante um movimento social. Este, requer a combinação dos princípios de identidade (um sentimento de pertença ao colectivo ou à classe), oposição (a identificação de um adversário) e totalidade (uma perspectiva que conjugue os interesses dos filiados com os objectivos mais gerais de luta contra a opressão). Convém no entanto não esquecer que a acção sindical foi desde sempre (e continua a ser) pautada pela diversidade. Embora a actividade sindical tenha raízes fortes no movimento operário, isso não significa que todo o sindicalismo seja de movimento. Alguns teóricos clássicos do movimento sindical, como o casal Webb, sublinharam acima de tudo a vertente economicista, reivindicativa e funcional dos sindicatos – o chamado "sindicalismo de mercado" –, que efectivamente deu lugar às modalidades mais corporativas e institucionais do sindicalismo moderno.
O objectivo de conciliar a luta por melhorias salariais e condições de trabalho com a missão de solidariedade internacionalista só em circunstâncias particulares teve algum sucesso, nomeadamente por influência da doutrina marxista, que contribuiu para desenvolver uma identidade colectiva – e uma consciência "de classe" –, que se propôs substituir as injustiças do capitalismo pelo "paraíso" socialista. Apesar dos sustos e recuos que isso infligiu às classes dominantes, o velho slogan do Manifesto comunista e a grande narrativa da "vanguarda" operária não passaram afinal de uma mistificação. Entre a linguagem de classe e o fenómeno em si sempre houve mais dissonâncias do que sintonias. Mas, se essa utopia se "desfez no ar", a edificação do Welfare State na Europa industrializada foi pelo menos tão real como o "socialismo real" do campo soviético. O novo modelo social – contratualizado por sindicatos, patronato e Estado – trouxe, de facto, importantes conquistas para os trabalhadores, elevou os seus níveis de bem-estar material. Além dos dispositivos de regulação dos conflitos, as políticas sociais promoveram a estabilidade do emprego que se tornou um canal privilegiado de mobilidade social e factor de prestígio social.
Porém, ao mesmo tempo que tais processos estimulavam o consumo e a integração da classe trabalhadora, os sindicatos alteraram os seus esquemas de funcionamento. A sua crescente influência no plano institucional, no desenhar das grandes reformas sociais, teve como contraponto uma progressiva perda de influência junto das bases. Enquanto o sector operário entrava em perda perante a rápida terciarização do emprego, crescia a chamada classe de serviço (a classe média assalariada) e – sobretudo a partir dos anos oitenta – acentuava-se cada vez mais o declínio das taxas de filiação sindical (pelo menos no mundo ocidental) . Embora no funcionalismo público elas se mantivessem elevadas, graças ao reforço das lógicas neocorporativistas nos segmentos mais estáveis do emprego.
Os novos movimentos sociais dos anos 60-70
Os chamados novos movimentos sociais (NMSs), nascidos na década de 60, trouxeram para a arena política formas criativas de activismo e intervenção pública, introduzindo um novo discurso, e novas e mais democráticas modalidades de organização. O desenvolvimento de uma geração em ruptura com o passado notava-se já na musica rock, no cinema, na poesia, na arte, na literatura, etc, onde a rebeldia sem causa da juventude dava lugar a culturas de dissidência que alimentaram o florescimento dos NMSs. As correntes pacifistas, feministas, ambientalistas, estudantis, etc, revestidas de formas e tonalidades discursivas diferenciadas trouxeram uma nova aura de utopia e esperança à luta política da época.
Perante o clima de guerra fria, a corrida aos armamentos, a guerra do Vietname, o espectro de uma guerra nuclear, a crise do Estado-Providência, lado a lado com a demarcação perante a ortodoxia leninista e estalinista – sobretudo após a Primavera de Praga –, expandiram-se amplas movimentações e protestos, dinamizados por camadas sociais diversas mas em especial pela juventude escolarizada, que se propunha mudar radicalmente o mundo mas defendendo o "mundo da vida" contra o "sistema". Contendo no seu seio uma vasta gama de correntes ideológicas (trotsquismo, maoísmo, leninismo, guevarismo, feminismo, pacifismo), os NMSs dos anos 60-70 tiveram nessa diversidade a base da sua autonomia. Demarcaram-se da "vanguarda operária" e imprimiram ao conflito político novos contornos que não o da luta de classes, enquanto o sindicalismo, por sua vez, não deixou de olhá-los com desconfiança e cepticismo.
Animados sobretudo pelos sectores radicais da juventude politizada das classes médias urbanas, os NMSs mostraram a sua novidade em aspectos como as estruturas flexíveis e formas ad hoc de organização, as lideranças efémeras e relativamente espontâneas, os objectivos de luta simultaneamente imediatos e de longo prazo ("o futuro é agora!"), as denúncias locais e globais ("pensar globalmente, agir localmente!") e ainda a espectacularidade das acções públicas, chamando a atenção dos mass media. O impacto dos NMSs deriva muito da sua vinculação a uma "contra-cultura" geracional que se propagou no tempo, mesmo depois do seu esvaziamento politico, e continuou a repercutir-se na sociedade sob diversas formas.
Em contextos particulares, como aqueles onde a luta de massas e o clima de agitação política foram mais intensos – como aconteceu em Portugal no 25 de Abril de 1974 – o sindicalismo e a acção popular misturaram-se de tal modo que foi impossível distingui-los. Partidos, sindicatos e movimentos de base combinavam "novas" e "velhas" lógicas de acção. A Revolução dos Cravos foi, como se sabe, vista por muitos como expressão de continuidade dos NMSs da Europa, um exemplo que chegou a criar expectativas de construção de uma democracia participativa e socialista, fundada nos movimentos populares. Mas ao mesmo tempo os partidos da extrema-esquerda e o PCP advogavam uma "ditadura do proletariado" ou sonhavam com um novo enclave soviético na península Ibérica (a lei da unicidade ia nesse sentido). Seja como for, a "utopia" portuguesa desvaneceu-se rapidamente e a história prosseguiu com a institucionalização da democracia representativa e a posterior adesão do país ao clube da UE. O campo laboral e as estruturas sindicais foram sendo progressivamente colocadas perante problemas comuns aos outros países europeus, derivados da abertura de fronteiras e da globalização económica.
Globalização e os novos desafios do sindicalismo
Entre os efeitos da globalização neoliberal surgiram novas formas de trabalho mais desreguladas e um quadro social marcado pela flexibilidade, subcontratação, individualização e precariedade da força de trabalho. Assistiu-se a uma progressiva redução de direitos laborais e sociais, e ao aumento da insegurança e do risco, num processo que se vem revelando devastador para a classe trabalhadora e o sindicalismo neste início do século XXI. Já não são os direitos laborais que se pretende defender, mas apenas o emprego e reforça-se a ideia de que "o pior dos empregos é sempre preferível ao desemprego", o que traduz bem a debilidade em que se encontra hoje o trabalhador. O actual compromisso capital-trabalho não passa de uma aparência de compromisso, ou seja, uma imposição de novas e mais precárias condições ao parceiro mais fraco do contrato.
Tomados por muitos como factores de bloqueio ao crescimento económico e ao desenvolvimento, os sindicatos queixam-se, com razão, de que estamos a regressar aos tempos "satânicos" de Marx. Mas, a mítica classe operária que alimentou o discurso sindicalista do passado está em irreversível desagregação e não surge no horizonte nenhuma outra entidade capaz de congregar a unidade dos assalariados. As actuais pressões do mercado e da economia global deixam aos sindicatos uma margem de manobra cada vez mais estreita, mas por outro lado o esforço de actualização por parte das estruturas sindicais tem sido diminuto e insuficiente para responder aos problemas actuais.
Nas últimas décadas, enquanto a economia e os mercados deixaram de estar confinados a fronteiras, o movimento sindical revelou grandes dificuldades em agir para lá do âmbito nacional (e muitas vezes sectorial).
A globalização encerra múltiplas contradições e gera efeitos paradoxais, por vezes justapondo lógicas globais e locais. Expressão disso foi a recente onda de movimentos sociais que se reclamam de "alter-globalização". Apesar do sindicalismo apenas timidamente se ter envolvido nessas iniciativas, o actual contexto apresenta um conjunto de novos desafios para o movimento sindical e outros movimentos sociais. Diversos autores e académicos têm formulado a necessidade de se criarem novas alianças e dinâmicas internacionalistas, inclusive através do potencial que representa o "ciberespaço" como instância decisiva do activismo em rede e a democracia electrónica do século XXI.
Tais dinâmicas só poderão fortalecer-se com um sindicalismo de novo tipo: um sindicalismo de movimento social, ao mesmo tempo local, nacional e transnacional; pragmático e utópico, mas também autónomo e criativo; orientado para a intervenção cidadã, que se estenda para além da esfera laboral; que passe das solidariedades nacionais para as transnacionais, de dentro para fora, dos países avançados para os países pobres; que não abdique da defesa dos valores democráticos, mas em que estes se alarguem à democracia participativa (nas empresas, instituições públicas, escolas, cidades, comunidades, etc); que coloque as questões ambientais e a defesa dos consumidores, dos saberes e tradições culturais locais, no centro das suas lutas e negociações; que resista ao capitalismo destrutivo através de um maior controlo sobre o processo produtivo, os investimentos, a inovação tecnológica e as políticas de formação e qualificação profissional; que pense os problemas laborais no quadro mais vasto da sociedade, da cultura ao consumo, do trabalho ao lazer, da empresa à família, do local ao global; por fim, que saiba aproveitar os novos meios informáticos e as tecnologias da informação para se tornar mais interventivo e dinâmico, em especial junto das camadas de trabalhadores mais jovens e/ ou mais precários.
Mas tudo isto pressupõe uma estratégia ambiciosa que rompa com a prática de acomodação ao funcionamento burocrático em que boa parte do actual sindicalismo se deixou enredar. Tudo isto pressupõe um debate aberto e uma genuína vontade de renovação (do sindicalismo, da ideologia e da esquerda), o que em Portugal é urgente. Muitos sindicalistas e dirigentes mostram vontade de prosseguir este caminho de abertura, mas as forças da ortodoxia comunista que ainda dominam as estruturas sindicais (no caso as da CGTP) – presas que estão às suas próprias teias dogmáticas, ou por puro instinto de sobrevivência – dificilmente irão permiti-lo. O dilema actual é, pois, entre: consolidação sindical com reforço da autonomia, da abertura e da democracia interna; e implosão sindical com reforço da instrumentalização e do aparelhismo autoritário.
Referências
Dibben, Pauline (2004) "Social movement unionism", in Harcourt, Mark & Geoffrey Wood (eds.), Trade Unions and Democracy. Manchester: Manchester University Press, p. 280-392.
Estanque, Elísio (2007), "A questão social e a democracia no início do século XXI", Finisterra – Revista de Reflexão Crítica, vol. 55/56/57, Lisboa, p. 77-99.
Waterman, Peter (2002), "O internacionalismo sindical na era de Seattle", Revista Crítica de Ciências Sociais, 62. Coimbra; CES, p. 33-68.