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12-08-2017        Público

Os acontecimentos em curso na Autoeuropa, empresa que tem sido apontada como um caso raro e exemplar de uma cultura organizacional marcada pelo diálogo e a democracia no trabalho, ameaçam por em causa um modelo laboral que tem dado bons frutos e beneficiado, até agora, trabalhadores, empresa e a própria economia portuguesa. O pré-acordo celebrado no passado 28/07 entre a administração e a comissão de trabalhadores (CT) despoletou um conflito aberto entre dois setores da força de trabalho que há muito mantêm uma relação tensa. No documento prevê-se a realização de 18 turnos de trabalho (três turnos diários de segunda a sábado, uma folga ao domingo e outra rotativa durante a semana) de modo a responder à necessidade de montar mais de 200 mil veículos por ano, resultantes da produção no novo modelo desportivo – o T-Roc – de resto já iniciada em 31/07. Estima-se ainda a alocação de mais 750 trabalhadores dos cerca de 2.000 que a Autoeuropa tem em contratação. Tal iniciativa foi, no entanto, rejeitada pelas estruturas sindicais afetas à CGTP (Fiequimetal e Site-Sul) e posteriormente recusado por cerca de 75% dos trabalhadores.

Entretanto, mais do que a manutenção de um pré-aviso de greve para 30/08 pelo Site-Sul, para contestar os horários por turnos, a demissão da CT (e do seu coordenador da condição de filiado no Site-Sul) antecipa um cenário de conflito. Este cenário tem razões próximas (de natureza económica) e razões de fundo (de natureza política). Trata-se, na verdade da confirmação de dois modus operandi contraditórios: a CT, alinhada com a cultura de diálogo da VW; e os sindicatos, assumindo uma postura mais conflitual e ideológica, na linha da conceção sindical da CGTP. Recorde-se, por exemplo, o célebre acordo dos down-days (novembro de 2003) para fazer face à quebra de produção resultante da crise mundial do mercado automóvel. A CT e a administração acordaram (ao contrário dos sindicatos) 22 dias de paragem por ano, salvaguardando empregos e sem perda de salários.

É um facto que a cultura de parceria social da Autoeuropa beneficia da influência da “casa mãe” alemã. Basta lembrar que, desde 1960, a “lei-VW” confere direitos de cogestão ao conselho de supervisão: para encerrar uma fábrica são precisos 80% de votos, mas como o conselho de supervisão é composto por 10 representantes de trabalhadores e 10 acionistas o processo fica dificultado. Além disso, o conselho de empresa europeu (criado em 1992), a Declaração sobre direitos sociais e relações industriais na Volkswagen (2002), ou a Carta das relações laborais do Grupo Volkswagen (2009) são, entre outros, testemunhos de convergência entre administrações e representantes de trabalhadores (CT e sindicatos) no universo VW.

Mas na fábrica portuguesa a CT (interlocutor privilegiado das negociações salariais com a administração) e sindicatos (que reclamam para si o monopólio da contratação coletiva e da negociação de salários) fazem leituras dissonantes da flexibilidade laboral. Onde a CT vê oportunidades os sindicados (e agora a maioria dos trabalhadores) veem ameaças.

Por um lado, é perfeitamente legítimo, como se lia num comunicado do Site-Sul, reclamar o “direito a descanso aos fins-de-semana (…), a melhor qualidade de vida (..), a preservar a saúde”. Ou, mais ainda, afirmar que “o dinheiro (…) não compra saúde nem tempo para estar com a família, para o lazer, o desporto e a cultura, em suma, a felicidade”. Resta saber se este “direito a desligar” se vai manter dissociado da vertente pecuniária ou se o grosso dos trabalhadores que votou contra o pré-acordo estaria disposto a rever a sua posição caso a empresa aceitasse pagar por quatro sábados 400 euros em vez de 175 euros.

Por outro lado, os sindicados veem aqui uma oportunidade de recuperação de protagonismo já que a sindicalização na empresa baixou de 45%, em 2006, para menos de 20%, em 2016. Porém, a CT demissionária recorda que o pré-acordo significaria trabalhar menos horas por semana (38,20h) e menos 10 dias por ano, lembrando ainda o encerramento da Opel na Azambuja (em 2006), motivado pela recusa (por parte de CT e sindicatos) da flexibilidade de tempo de trabalho através da negociação de um “banco de horas”.

Acresce que o novo líder da CT (que substituiu António Chora), embora já fizesse parte da equipa anterior, precisa ainda de consolidar o seu capital simbólico, político, relacional junto do coletivo, o que se joga agora na rutura assumida ao demitir-se do sindicato. Entretanto, neste momento de incógnita quanto ao desfecho do conflito e da anunciada greve, espera-se que decorram negociações “de bastidores”, até porque a CT (tal como os sindicatos) não é impermeável a influências políticas e o demissionário líder continua a lutar pela sensibilização dos trabalhadores. O processo de preparação da luta operária sempre conteve elementos de negociação. E o poder das partes joga-se nessa dialética.

Estamos, assim, perante um test-drive à Autoeuropa. As experiências de boas práticas anteriores são demasiado importantes para serem descartadas e é possível que ao longo deste processo as partes tentem alguma aproximação. Resta saber se, perante o atual cenário de dificuldades no campo laboral em geral, a sensatez de dirigentes de ambos os campos irá prevalecer ou se estamos perante um risco iminente de uma rutura definitiva, não apenas entre trabalho e capital mas sim de “trabalho” contra “trabalho”, o que pode traduzir-se em perdas drásticas para todos. Se assim for, bem se pode dizer que o “modelo” agora testado neste test-drive foi um falhanço absoluto. Que vingue o bom-senso.


 
 
pessoas
Elísio Estanque
Hermes Augusto Costa



 
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