Alguém se pergunta como seria a vida de um povo deprimido se não existisse um entretenimento tão poderoso como este?
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Gosto de futebol. Do futebol jogado dentro das quatro linhas. Como adepto gosto do espetáculo (e, claro, de ver o meu clube ganhar); como cidadão, indigna-me a rede de interesses que circulam em torno do futebol e o excessivo poder económico que alcançou a nível mundial; e como sociólogo procuro analisar e compreender um fenómeno de massas tão complexo e cujo poder simbólico e identitário não encontra rival nas sociedades modernas.
Os meandros do futebol constituem um labirinto de interesses infinito, e salta à vista de todos a quantidade de gente que beneficia com o negócio. Os agentes, as marcas patrocinadoras, os dirigentes dos clubes, o comércio de franchising, os jornais, rádios e televisões, os Estados e as economias locais e nacionais onde ocorrem os grandes eventos (e onde estão sediados os clubes de maior prestígio), etc., etc. É, sem dúvida, um fenómeno social complexo, que assenta em fatores psicológicos e socioculturais (além dos económicos), e é por isso que desperta tantas paixões, mesmo entre muitos daqueles que têm plena noção dos seus efeitos mais perniciosos na sociedade. Sendo o futebol, na atualidade, não só um desporto mas uma indústria global, é inevitável o seu impacto socioeconómico. A ligação do “mercado futebol”, quer a oligopólios, marcas e grupos empresariais, quer aos próprios Estados que o usam estrategicamente, é reveladora da sua força simbólica e poder financeiro.
A transferência de Neymar do Barcelona para o Paris Saint-Germain (PSG) e os valores escandalosos da operação (222 milhões de euros), que ocupou as prime-news das televisões e jornais do mundo inteiro, dizem bem da importância económica — e política — do futebol. No caso, um pequeno Estado — o Qatar — está no centro da jogada. Antigo protetorado do Reino Unido, independente desde 1971, esta pequena monarquia do Golfo Pérsico soube usar a riqueza petrolífera e de gás natural para se modernizar (é minúsculo em população mas riquíssimo economicamente). Acolheu a rede Al Jazira e ultimamente suscitou a hostilidade dos seus vizinhos, nomeadamente a Arábia Saudita e o Bahrein, que o acusam de apoio ao terrorismo, além de partilhar uma visão do mundo árabe contrária à dos sauditas e seus aliados. Daí resultou o atual embargo destes à exportação de produtos alimentares (de que depende completamente; veja-se peça do PÚBLICO de 04/08/2017, “A culpa é do Rei Salman”). Tais tensões projetam-se agora no campo dos patrocinadores das grandes equipas europeias, um domínio hoje disputado pelo Qatar e os Emiratos Árabes Unidos.
Além de outras ameaças, como a tentativa de proibição da cadeia de televisão Al Jazira, o Governo da Arábia Saudita terá até recomendado aos seus cidadãos que não usassem camisolas do Barcelona, que até à época passada ostentavam a sigla da Qatar Airlines, seu patrocinador. Ora, se nos lembrarmos que o Qatar será sede do Mundial de futebol de 2022 e, por outro lado, que o presidente do PSG é o catari Nasser Ghanim Al-Khelaifi (muito próximo do Emir do Qatar, Tamim Al Thani), ex-presidente de uma cadeia televisiva com o exclusivo dos grandes jogos (beIN), e que a Autoridade de Investimento do Qatar (QIA) é a dona do PSG (um fundo soberano, que pertence ao governo do Qatar), fica claro que a promiscuidade entre os negócios do futebol assume neste caso um estatuto de política de Estado.
De um lado, há o interesse em usar o nome de um dos mais famosos jogadores do mundo para promover a jogada de charme que será, a nível internacional e do ponto de vista do país, o Mundial do Qatar (sobretudo se correr bem) e, por outro lado, temos um Presidente francês recém-eleito (ainda mais jovem que o presidente do PSG), desejoso de afirmar o seu estilo moderno e desempoeirado, mas sobretudo a confirmar a sua conhecida intimidade com o mundo financeiro. E aí, é claro que o sistema fiscal francês agradece os impostos aplicados aos milhões dos salários e transferências de jogadores de futebol em que Neymar é apenas o exemplo.
Uma curiosidade, que já não espanta ninguém hoje em dia, é a história daquele caso denunciado há tempos, e objeto de piadas na Internet, em que o salário pago pelo PSG a um jovem recém-licenciado era de menos de metade do salário mínimo francês, enquanto Ibrahimovic recebia 2,6 milhões por mês (suscitando a ira de grupos de ativistas). Imagina-se que a política do clube — tal como a dos outros, incluindo os portugueses — não terá mudado em matéria de injustiças salariais com a chegada de um ídolo ainda mais caro do que o sueco.
O assunto marcou os últimos dias, com tentativas de travagem (falhadas) pelo meio: enquanto em Barcelona se queimavam camisolas, Neymar chegou triunfal a Paris, com adeptos multiculturais à beira da loucura e, como não podia deixar de ser, foi logo saudado pelo Presidente Emmanuel Macron. Abrem-se assim “novos horizontes” para o PSG e para todas as partes envolvidas no negócio. Sem dúvida que, do ponto de vista do cidadão comum, o brilho do “vil metal” parece dar ainda mais brilho ao futebol que, reconheça-se, tem uma “magia” própria. E não só dentro das quatro linhas. Mesmo os que criticam e denunciam a exorbitância dos valores em causa, no fundo, deixam-se guiar por esse fascínio gerado pela grandeza dos que triunfaram e atingiram o topo.
Estamos todos enleados nas mesmas engrenagens socioculturais. O valor agregado que faz aumentar exponencialmente os lucros das sociedades gestoras de fundos, os salários de presidentes e empresários de jogadores, os montantes das transferências e os ordenados pornográficos dos grandes ídolos não vem unicamente da especulação financeira e da corrupção. Emana da sociedade de consumo em que vivemos. E, portanto, dos nossos hábitos. Ou seja, eles são ídolos não apenas devido à capacidade técnica, aos golos e à intensidade e beleza das jogadas, mas porque há milhões de aficionados que pagam bilhetes, quotizações, compram jornais desportivos, assinam canais de TV, etc., que alimentam o mercado e a máquina mediática promotora da idolatria.
No final de uma semana de trabalho, assistir a um jogo decisivo é um lenitivo insubstituível. Uma “alienação consciente” e libertadora. Todos os centros urbanos do mundo estão povoados de bares e ecrãs plasma, por isso mesmo. Os portugueses adoram futebol e vibram intensamente com os grandes jogos — embora, devido ao excesso de clubismo, percam mais tempo em discussões inúteis do que a apreciar o jogo, ao contrário, por exemplo, da Inglaterra, país berço do futebol. Nada justifica (a não ser o mercado das audiências) as horas infinitas semanais dedicadas a “discutir” futebol nos principais canais televisivos em Portugal.
Mas, mesmo admitindo que, por absurdo, um dia a exaustão propagandística atingisse o seu ápice, alguém acredita que seria possível uma “greve geral” ao futebol? E alguém se pergunta como seria a vida de um povo deprimido se não existisse um entretenimento tão poderoso como este? Quanto vale o “orgasmo coletivo” do golo decisivo do nosso clube de coração? Em que outras atividades existem tantos profissionais de origem popular que atingiram o topo? Haverá uma atividade mais democrática (ou meritocrática) do que o futebol? Algum português poderia ficar indiferente à gloriosa vitória da nossa seleção no Euro 2016?
O valor simbólico, afetivo, identitário das grandes finais é incomensurável. E isso também se faz, e muito, com as estrelas mais cintilantes. Ronaldo pode exceder-se e ficar encandeado com o seu próprio brilhantismo (ao comparar-se a uma luz brilhante que atrai os insetos). Mas a verdadeira luz que constrói a idolatria funda-se, em última instância, na energia dos adeptos e consumidores de futebol. Na sociedade atomizada e de risco em que vivemos, a massificação e, sobretudo, a excitação coletiva das multidões tornaram-se a contraparte do individualismo e da solidão. O futebol é emoção e arte em movimento. Por isso produz e reproduz formas identitárias dotadas de um poder simbólico e político tão impressionante. Por isso os milhões são alimentados por milhões.