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01-08-2017        Le Monde Diplomatique

Com a aprovação pela Assembleia da República da nova Lei dos Baldios abre-se um período para as comunidades se organizarem e decidirem colectivamente os usos que pretendem dar a estas terras, sejam eles agrícolas, florestais ou outros. Em áreas rurais, mas por que não também urbanas, a propriedade e gestão comum destas terras pode encontrar respostas que combatem flagelos como o desemprego e os incêndios, mas também favorecer a fruição do contacto com a terra e aprofundar a qualidade da democracia. 

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Poderíamos achar que o pior já passou. Com a nova Lei dos Baldios, prestes a ser publicada, conseguiu-se sem dúvida eliminar alguns dos obstáculos à completa devolução dos baldios aos seus legítimos detentores - os povos. Espera-se que, com esta nova lei, os compartes - membros duma comunidade - possam ter uma voz activa nos modos de uso e fruição do seu património colectivo, no destino dos seres vivos que crescem nos baldios e nos elementos básicos (terra, ar, água e fogo) que governam a vida desde tempos imemoriais. No entanto, temos de entender as dificuldades gigantescas que os povos enfrentam para conquistarem essa voz.

Uma grande parte dos baldios são hoje florestas, fruto dum processo histórico bem documentado de implantação do regime florestal em Portugal, ocasionalmente com violência, que submeteu os baldios ao domínio dos serviços florestais da Primeira República e do Estado Novo. Em 1976, os serviços florestais devolveram aos povos os baldios com árvores, que, na maioria dos casos, sem conhecimentos técnicos de silvicultura, confiaram a gestão das florestas aos mesmos que as plantaram. Em 2013, das 1441 unidades de baldios documentadas pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), 60% encontravam-se em regime de associação entre os compartes e o Estado. Assim, o Estado continuou a administrar os baldios no regime democrático. É por isso que, apesar de em Portugal apenas 3% das florestas serem públicas, a percentagem mais baixa da Europa e uma das mais baixas do mundo, o Estado administra cerca de 9% da área florestada, correspondendo não só às florestas públicas, mas também às florestas comunitárias em regime de associação entre os compartes e o Estado. Nos Açores, os baldios mantiveram- -se nas mãos dos serviços florestais regionais que os administram em nome da região, com a excepção notável da ilha do Corvo.

Nem todos os baldios têm árvores e, consequentemente, nem todos os baldios estão na lista do ICNF. Mas as terras comunitárias sem árvores também não escaparam ao desapossamento histórico dos povos. Muitos baldios não foram restituídos a comunidades de compartes e figuram no parcelário do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) para receberem fundos europeus. No processo de devolução, muitos baldios foram capturados por municípios e juntas de freguesia que no passado haviam sido muitas vezes agentes da privatização ou cúmplices da sua entrega aos serviços florestais do Estado. As receitas assim obtidas reforçaram o seu poder e alimentaram redes clientelistas locais, mas a participação cidadã foi bloqueada.

O difícil regresso do povo
«Passa o cão, passa o gato e a terra fica», dizia a minha bisavó. E as terras baldias ficam, mas os compartes partem. Basta cruzar o mapa dos baldios em Portugal Continental no Portal da Federação Nacional dos Baldios (BALADI) com o mapa da densidade populacional dos censos do Instituto Nacional de Estatística (1NE): muitos baldios situam-se em lugares despovoados e envelhecidos, drenados de pessoas por sucessivas vagas de emigração, onde os idosos que ficam necessitam de apoio social. Basta também cruzar o mapa dos baldios com os mapas da ocupação de solo, dos recursos geológicos e eólicos de Portugal para compreender que os territórios comunitários detêm recursos com muito valor industrial. Estas indústrias usam e consomem os recursos que alimentam mercados globalizados, mas têm fraca capacidade de gerar empregos qualificados e dinamizar economias locais. Nos baldios periurbanos, próximos de núcleos populacionais significativos de vilas e cidades, a maioria das pessoas desconhece a existência de terras comunitárias, o seu direito a elas e como são, ou podem ser, governadas.

Desconhecem que podem participar nas assembleias de compartes, que podem eleger conselhos directivos ou delegar os poderes de administração de baldios na junta de freguesia, mantendo a realização das assembleias de compartes, e que a decisão sobre a cessão de exploração dos baldios para plantações de eucaliptos e outras árvores, parques eólicos, minas ou pedreiras é do povo. As lutas dos baldios são antigas, e poucas pessoas têm memória delas ou consciência dos usos que elas próprias fazem dos baldios, sempre que passeiam, fazem desportos de montanha ou se dedicam a actividades de lazer. O apagar da memória dos baldios e das suas formas de governação tem consequências trágicas. Enquanto o povo se esquece do que é seu, os que ocupam o seu território espoliam os seus recursos, muitas vezes em troca de nada. Como Damián Copena da Universidade de Vigo tão bem demonstrou no caso dos parques eólicos na Galiza, os proprietários das terras comunitárias recebem em média uma renda que corresponde a 1,5% do que os parques facturam. Dada a reduzida capacidade negociai dos povos, os contratos que fazem podem ser qualificados como fáusticos, pois vendem a alma ao comprometer o futuro das gerações vindouras com ocupações de solo danosas que podem durar uma vida. A realidade dos baldios é dura, e frequentemente mais feia do que bela. Mas a maior beleza que encerra é a possibilidade de regresso do povo.

O regresso do povo é dificil, pois tem de vencer a alienação de dois séculos dos baldios, dois séculos em que tentaram torná-los obsoletos, e tem de expulsar os que indevidamente ocuparam as suas terras e recursos para fins degradantes e geradores de injustiças ambientais, usos estes que resultaram na perda de serviços de ecossistemas e biodiversidade, conflitos e violência social, e mesmo perda de vidas humanas por via de catástrofes como os incêndios. A nova Lei dos Baldios brinda os povos com essa possibilidade; dá mais protecção aos que já conseguiram organizar-se e reclamar os seus baldios. No espaço de dez anos, põe fim ao regime de associação com o Estado, que até aqui operava sem prazo. Mas a nova lei também dá um prazo aos povos: se não conseguirem organizar-se e requerer a devolução dos seus baldios ao fim de 15 anos, estes passarão a integrar o domínio público da freguesia, regularizando duma vez por todas a pretensão das juntas de freguesia aos baldios e às receitas geradas pela sua exploração.

Para reclamar os baldios, os povos terão de suportar enormes custos. Para começar, as comunidades locais nunca foram capacitadas para a gestão florestal. As que foram capacitadas para proteger as florestas e as populações do fogo com as equipas de sapadores florestais têm, no entanto, um ponto de partida para as poderem gerir. Difícil também será denunciar os contratos de cessão de exploração que podem durar uma vida - até 80 anos -, caso queiram recuperar as florestas para usos múltiplos e plantar as «árvores bombeiras» para proteger as populações do fogo. Os custos serão económicos, sociais e afectivos, pois a conflituosidade social gerada em torno dos baldios é capaz de dividir os povos e destruir as relações humanas no lugar. Os custos serão também ambientais, pois a recuperação das florestas implica fazer frente às espécies invasoras, às pragas e às doenças que assolam o pinheiro, à erosão do solo, à perda de biodiversidade e às alterações climáticas. Como os baldios ficam frequentemente de fora das políticas e programas de apoio que pretendem responder a estes desafios, os compartes poderão ser deixados a enfrentar estes problemas sozinhos.

Há lugares onde estão a desaparecer os povos com possibilidade de recuperação destas terras comuns, mas noutros espaços eles tentam reconstituir-se e criam baldios. Porque os baldios são fundamentais para assegurar as necessidades básicas do povo e o direito à água, à natureza e à segurança. Podem ser uma forma de responder à crise económica, pois dinamizam economias locais e criam empregos qualificados. As receitas dos baldios complementam os magros orçamentos das juntas de freguesia e das instituições de solidariedade social, Mas não podem suportar sozinhos o fardo da austeridade. Os problemas ambientais e o colapso do Estado social e dos serviços públicos não podem ser colocados nos ombros das comunidades locais de compartes.

Aprender a governar terras comuns
Recuperar os baldios é recuperar os povos e este é certamente um dos maiores desafios civilizacionais que a humanidade enfrenta. Poderá mesmo ser um dos mais imaginativos. As terras comuns de outros lugares da Europa e do mundo vivem o mesmo dilema, e estão cheias de experiências inspiradoras que podem ajudar-nos a pensar o futuro dos baldios. O Prémio Elinor Ostrom deste ano, atribuído pela Associação Internacional para o Estudo dos Comuns, foi dado à Associação Florestal de Sória pela forma criativa como conseguiu mudar as suas instituições para impedir a morte certa por extinção da comunidade local, abrindo a governação a quem tem vínculos com a terra, mesmo não morando lá.

Vivemos num tempo, como diz Boaventura de Sousa Santos, de perguntas fortes e respostas fracas. A recuperação dos baldios merece muito mais apoio por parte do Estado e dos centros produtores de conhecimento, para fortalecer a resposta comunitária. A possível criação e recuperação de terras comuns pelo povo é mutuamente constitutiva, assim como a sua desvalorização é mutuamente degradante. Ninguém conhece o futuro dos baldios, nem quantos serão extintos no futuro. Mas também não sabemos quantos baldios novos poderão ser criados; que inspiração podem trazer os baldios para os meios urbanos; ou que novas alianças poderão estabelecer com os poderes públicos e privados se outros modelos de Estado e de economia tomarem forma. Este ano, pela primeira vez, vai haver uma Escola de Verão para jovens sobre os baldios. Trata-se do COMUNIX - Participação Activa de jovens na Governação de Áreas Comunitárias, um projecto europeu do Erasmus + juventude em Acção. Resulta duma parceria entre o Centro de Estudos Sociais (CES, Portugal), a Cooperativa Cultural Trespés (Galiza) e a Partecipanza Agraria de Nonantola (Itália). Durante duas semanas, 21 jovens vão aprender a governar terras comuns, em contacto directo com os membros das comunidades locais que os recebem - Mancomunidade de Pontevedra e Comunidade de Compartes dos Baldios dos Lugares da Extinta Freguesia de Vilarinho, na Lousã. Lembrar as gerações mais jovens que os baldios existem é um tímido passo para a sua recuperação e reconfiguração imaginativa, mas pode ser um começo. Fazê-lo numa Europa em crise poderá dar um novo alento aos que procuram outras formas de entendimento entre os povos. Descubram a diversidade de governo das terras comuns, e apaixonem-se pela possibilidade que representam os baldios - a de os moradores locais decidirem colectivamente o destino do seu território. Porque as indústrias não se esquecem dos baldios.
 


 
 
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Rita Serra



 
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