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21-07-2017        Público

«O choro político, quer com origem no sofrimento, no alívio ou no desespero, é hoje uma realidade política. A exibição da empatia e dos sentimentos é o ditame de uma sociedade crescentemente despolitizada, que encena a política como um drama de consciência e uma comédia de justiça» (Marcus Steinweg, The Terror of Evidence, MIT Press, 2017, tradução própria)

Um desastre ou uma catástrofe são sempre usados politicamente. Os desastres são sociais e não meramente o produto de condições naturais excecionais. Na conjunção dos fatores culturais, societais e naturais deve-se atender ao papel das forças, organizações e valores que estão na base da produção do ambiente que origina e facilita os desastres. O excecionalismo dos desastres, como o bem mostrou Rachel Luft a propósito do furacão Katrina nos Estados Unidos, afasta a abordagem sistémica e política dos acontecimentos extremos e qualquer noção de cidadania, de justiça, de direitos e de reparação.

O capital de cidadania e as questões que emergem sobre a confiança cívica também assumem especial relevo nos estudos sobre as comunidades de desastre. Na esfera local é importante incorporar a politização do luto e da dor, as lutas em torno do trauma e dos afetados e o sofrimento que pode estar na base da política.

No caso do incêndio de Pedrógão Grande, há várias especificidades que importa salientar. Antes de mais, assistiu-se a uma rápida construção de uma narrativa oficial por parte do Governo, assente na aprendizagem pelo Estado e das suas diversas instituições do impacto e das consequências da queda da ponte de Entre-os-Rios. Os governantes apressaram-se a classificar os acontecimentos de “tragédia”, numa linha de continuidade interpretativa e simbólica com o desastre de Entre-os-Rios, convocando as noções desculpabilizantes de fatalismo, de imprevisto e de excecionalidade. O excecionalismo dos desastres torna exógenas as causas, os processos e as dinâmicas que estão na origem dos mesmos, invizibilizando a quotidianidade das desigualdades, das discriminações e das ineficiências políticas e institucionais.

As perguntas avançadas pelo primeiro-ministro, António Costa, à ANPC, à GNR e ao IPMA, procuraram fechar o debate e marcar a agenda mediática, não soçobrando à pressão da comunicação social e à espectacularização dos acontecimentos.

Uma outra especificidade do incêndio de Pedrógão Grande, esta quase obscena, e arredada de qualquer lógica de cidadania, relaciona-se com o facto inédito e raramente visto da apropriação do sofrimento, da politização do sofrimento por parte dos responsáveis políticos (da ministra ao secretário de estado e aos presidentes de Câmara), irrompendo em choro e abraços mútuos de conforto. Ali, o Estado, representado em todos os seus níveis institucionais, revelava a sua inépcia, o seu autocentramento numa lógica de complacência reconfortante mas ineficaz. Ineficaz e, a nível da comunicação de risco, perigosa quanto à imagem e à mensagem transmitidas em direto para o país. O afã do Presidente da República em chegar ao local dos acontecimentos, mobilizando meios extraordinários para a sua proteção e segurança, reforçava a ideia de excecionalidade e de sobressalto institucional.

Estamos, efetivamente, longe da atuação do então Presidente da República Jorge Sampaio, que via em Entre-os-Rios e na segurança das populações e na temática dos riscos uma dimensão de cidadania, ou na assunção do governo de António Guterres da responsabilidade do Estado português pelo desastre e no pedido ao Provedor de Justiça de cálculo das indemnizações a atribuir aos familiares das vítimas.

A mensagem do Presidente da República de 17 de julho de 2017 devolve humanismo ao Estado e a centralidade devida às vítimas e aos seus familiares. A verdade e a reconstrução são imperativas, como se salienta na mensagem, mas a convergência nem sempre é desejável, sobretudo num contexto marcado pela politização do sofrimento e pela necessidade de contranarrativas ao discurso oficial e neutralizador (por exemplo, agregando numa mesma análise as mortes do incêndio de Pedrógão Grande e o furto de material de uma instituição militar).

A análise da tensão entre a memória local e a memória oficial no enquadramento dos acontecimentos e na luta sobre as versões dos mesmos é também fundamental nos estudos sobre as comunidades de desastre.
Quem visita demoradamente os territórios e as comunidades afetadas pelo incêndio de Pedrógão Grande apercebe-se de um esforço e de uma reivindicação de rememoração e de apropriação simbólica do espaço. Sobreposta à reposição apressada das placas de sinalização, dos separadores e das marcações das estradas nacionais, do corte das árvores e arbustos nas respetivas bermas, numa ânsia de ordem pós-evento das entidades oficiais, em contraste com as placas que permanecem queimadas no interior das localidades e nas estradas municipais, temos os ramos e as coroas de flores que assinalam de forma simples mas indelével a memória dos que faleceram quando ninguém os defendeu ou os recolheu, ou quando circulavam em estradas públicas supostamente seguras. A paisagem de desastre na sua perenidade invoca os direitos básicos de cidadania e as responsabilidades do Estado.

 


 
 
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José Manuel Mendes



 
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