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10-07-2009        Diário de Coimbra
Da mítica cidade de Odessa (cenário do filme "Couraçado de Potemkin";), à beira do Mar Negro, um encontro com colegas da universidade local suscitou esta breve reflexão sobre os contrastes entre a Ucrânia e Portugal. Dois países localizados em extremos opostos da Europa, ambos sofreram experiências de regimes ditaturiais no século XX (o estalinismo e o salazarismo). A Ucrânia é hoje um Estado tão caótico e ineficaz que leva muitos a duvidar da sua viabilidade. É por isso natural que, do ponto de vista deles, qualquer país da UE, mesmo um país periférico como Portugal, seja visto como uma espécie de paraíso. Trata-se portanto de realidades muito distintas. Porém, lá como cá, há um sentimento geral de que "a politica"; não é uma actividade respeitável, antes pelo contrário. Porquê? Os motivos são diversos, mas também existe algum fundo comum aos dois casos.

No caso deles, o desmonoramento do antigo sistema soviético, e consequente recuperação da independência, lançou o país numa crise terrivel e colocou-o perante uma situação quase esquizofrénica, profundamente dividido entre as raízes culturais e as enormes pressões que o impelem para o lado da Rússia, e as esperanças reformistas de consolidação de uma democracia de matriz europeia, desencadeadas sobretudo a partir das revolução laranja de 2004. Tal dilema corresponde ao momento de impasse que ainda se vive na Ucrânia. E enquanto assim permanece, o poder e as instituições ficaram nas mãos de grupos de interesse manietados por "máfias"; corruptas que controlam o essencial da economia, do aparelho político e do Estado. A corrupção terá surgido em força logo na sequência da "perestroika"; quando boa parte dos antigos quadros e "aparatchiques"; do velho partido comunista, aproveitando-se do vazio de poder, se apoderaram de largas parcelas do património e da riqueza pública (a começar pelo equipamento militar) que foram traficados ilegalmente, permitindo o enriquecimento rápido e a construção de redes clandestinas – que se estenderam da Rússia aos seus antigos satélites – capazes de controlar subterraneamente o funcionamento de partidos e outras fontes de poder. Instalou-se a ideia de que estar na política é estar a soldo de interesses e poderes ocultos que tudo controlam; que anulam ou pervertem à partida qualquer tentativa de afirmar os mais primários princípios de uma efectiva democracia. Quanto à ideologia, às ideias e aos princípios, os cerca oitenta anos de regime sovietico serviu-lhes de emenda. A retórica oficial e a existência de disciplinas escolares obrigatórias como "marxismo científico"; saturou toda a gente, e as pessoas continuam a manifestar uma generalizada repulsa por tudo o que cheire a doutrina política. Do ponto de vista do cidadão comum, política é corrupção. Ponto.

Em Portugal, o Estado Novo pretendia ser a recusa da política. Dizia-se acima de qualquer ideologia. O que no regime soviético era excesso de linguagem ideológica, aqui era a sua total negação. Daí que, a nossa "abertura"; (com a revolução de Abril de 1974) desse lugar ao conhecido radicalismo ideológico, vivido com todas as esperanças e idealismos no periodo do PREC. Mas, como sabemos, à medida que a democracia se instituiu, o vigoroso "espaço público"; daquele período foi-se esbatendo e a actividade politica deixou de ser "o centro de tudo"; para passar a ser um campo de desconfiança e até de crescente suspeição. O Estado democrático entretanto construído foi "providencial";, mas não de igual modo para todos. Alguns sectores, mais ligados aos nucleos duros dos aparelhos politico-partidários, foram os seus principais beneficiários. O Estado de direito em vias de consolidação foi sempre parcialmente minado por interesses e estratégias que lhe eram estranhos, e depois, perante a crise eminente, perdeu fôlego e foi sendo corroído por poderes privados, redes e compadrios que se estendem do Estado aos partidos (que lhe disputam o controlo). Os cidadãos afastaram-se da vida pública, primeiro por razões individualistas, depois por descrença na política e nos políticos. Os próprios partidos (em especial os grandes) deixaram cair a doutrina e passaram a guiar-se pelas ambições pessoais dos seus quadros e líderes. Aquilo que antes era positivo, como o debate de ideias, a controvérsia, a defesa de cada campo ideológico, o pluralismo e a democracia interna dos partidos, foi dando lugar ao vazio e ao marasmo. Já não é apenas o caso de as "ideias"; estarem em plano secundário. Hoje quem as tem e as exprime abertamente (dentro ou fora do partido) torna-se alvo do mais torpe manobrismo e da habitual maldicência lusa. São os próprios partidos – supostamente os seu naturais promotores – que abdicam da política ou quererem destruí-la.

O passado já mostrou os resultados tenebrosos de regimes supostamente "apolíticos"; como o português ou de um falso "socialismo"; como no Leste europeu. Negar a política, ou confundir o exercício dos direitos e deveres de cidadania com o oportunismo e a incompetência de uma minoria de dirigentes mediocres é abdicar da esperança e da democracia. E para responder à crise precisamos do contributo criativo de todos e de cada um. Precisamos, pois, do regresso à luta política na sua plenitude.

 
 
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Elísio Estanque