Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
03-09-2009        Le Monde Diplomatique
A temática das empresas e das organizações está praticamente ausente dos debates políticos da esquerda. Falar de «produtividade» ou de «dinâmica empresarial» também parece suscitar arrepios a qualquer activista de esquerda (em especial da chamada «esquerda radical»). Creio bem que tal não contribui para reforçar a credibilidade da esquerda que se predente ser "alternativa"; às actuais políticas.

Ora, numa altura em que as atitudes negativas, o discurso pessimista, a crítica permanente contra o governo, a diabolização do capitalismo, a crise, o desemprego, a pobreza, etc., etc., nos começam a deixar exaustos, e enquanto não surgem no horizonte propostas alternativas ou soluções credíveis para os problemas estruturais da economia e do país em geral; e, por outro lado, quando já se falou tanto de crise e se começa agora a pensar o «pós-crise», talvez venha a propósito ensaiar algumas notas de reflexão em torno das empresas e da cultura de empresa (embora sem esquercer que a crise não só nao terminou como como não sabemos quando nem como irá terminar).

É importante que o discurso da esquerda não menospreze este assunto. Ou que passe a abordá-lo não apenas pela perspectiva da «crítica ao capitalismo», mas na defesa da actividade empresarial e organizacional como fonte de criação de riqueza, de progresso social e de bem-estar dos trabalhadores (desde que apoiados em modelos de gestão eficazes e democráticos). A empresa, tal como o próprio trabalho, sempre foram ao longo da história temas controversos, marcados por intensos conflitos, mas também por identidades e culturas de grupo, coesas e fortes. A importância da cultura no estudo das organizações não é um tema novo, mas importa trazê-lo à actualidade, quer porque urge pensar os caminhos para sair da crise, quer pelos contornos políticos de que se revestem as suas diferentes concepções. Existem, pois, visões distintas acerca do assunto, limitando-me aqui a destacar duas delas.

A noção de «cultura de empresa» começou por ser discutida no Ocidente nos anos 80 do século passado, a propósito do sucesso económico japonês. O termo «cultura» foi usado no seu sentido antropológico: a cultura como conjunto de crenças, valores, símbolos, rituais e práticas, que fornece aos grupos ou comunidades sociais o cimento para a sua identidade colectiva. Cada organização ou grupo humano dotado de estabilidade torna-se uma realidade única, funcionando – muito para lá das suas regras e hierarquias formais – na base de códigos, comportamentos e gestos cujo simbolismo adquire um sentido particular dentro do seu próprio contexto.

Os gurus da gestão de há trinta anos viram na «gestão pela cultura» um possível caminho para atingir ou consolidar a «excelência». Trataram de criar actividades de lazer e competições desportivas com equipas da empresa, de incentivar os rituais e os jogos internos informais, de criar prémios (monetários e simbólicos), quadros de honra, etc., que passaram a constituir os ingredientes capazes de levar os «colaboradores» (um eufemismo que voltou recentemente a estar na moda para meter no mesmo saco segmentos muito distintos da força de trabalho) a dedicarem-se à empresa, a orgulharem-se dela e a vivê-la como se fosse uma grande família.

Este primeiro paradigma funda-se numa concepção individualista e tende a ignorar a importância dos mecanismos de poder nas relações sociais e na estrutura das organizações. Já nos anos 30, no tempo de Elton Mayo e da Escola de Relações Humanas, se mostrou a importância do ambiente social (e físico) para a satisfação no trabalho, mas este "neocorporativismo culturalista"; situou esta abordagem no contexto da nova competitividade económica internacional e chamou a atenção para as questões da flexibilidade e da informalidade no campo laboral. Ao contrário do taylorismo, apoiado nos ritmos alucinantes, no controlo disciplinar, na cronometragem e na hiper-especialização, a gestão pela cultura estimulou o trabalho em equipa, tentando criar um corporativismo flexível, capaz de evitar a burocracia e a rigidez do planeamento e das hierarquias formais. Porém, este modelo tinha muito de manipulação produtivista e pouco de democracia laboral. Em todo o caso, recorde-se, mesmo com todos os seus defeitos, esta suposta "alegria no trabalho"; pouco ou nada vingou no Portugal democrático, prevalecendo antes o autoritarismo nuns casos e o laxismo burocrático noutros.

Há uma outra corrente, de origem francófona (não por acaso), que se oferece como alternativa à visão anterior e que, a meu ver, nos traz uma perspectiva mais dinâmica e ao mesmo tempo politicamente mais progressista e ajustada às sociedades europeias. Designadamente em países como Portugal, onde os antagonismos de poder, as estruturas de classe e as desigualdades sociais são bem marcantes e têm raízes profundas, não compreenderemos nada da nossa realidade empresarial – das suas fraquezas e potencialidades – se teimarmos em considerar igual aquilo que é diferente. Por outras palavras, não é correcto olhar para as empresas como se fossem organizações monolíticas e em que as relações de poder são horizontais (ou como se elas não existissem, como fazem muitos dos nossos patrões, os mesmos que querem todo para si). Sabemos bem que, mesmo na escala micro, as dissonâncias e desequilíbrios, as assimetrias de influência e poder na tomada de decisões são uma constante. Recorde-se o estudo recente sobre o EDI (European Democratic Index), que mostrou o quanto o nosso país possui profundos défices democráticos na democracia quotidiana, designadamente na esfera laboral, e ainda o modo como isso se liga à escassa actividade associativa e sindical.

Na verdade, o chamado «paradigma político-cultural» (promovido por autores como Michel Crozier, Alain Touraine, Serge Moscovici, Renaud Sainsaulieu, Philipe Bernoux, entre outros) mostra-se bem mais ajustado a explicar a natureza conflitual e complexa da realidade social empresarial. A empresa é vista como uma espécie de micro-sociedade composta por indivíduos com capacidade de iniciativa e que buscam a sua realização pessoal através do trabalho e do reconhecimento que ele pode conferir. Ao contrário das concepções tradicionais, que tendem a considerar que o trabalhador só produz se for sujeito a uma apertada vigilância e controlo (ou à velha lógica da cenoura e do chicote), esta concepção pressupõe que o indivíduo resiste à opressão e se dedica mais ao trabalho quando se sente mais autónomo, recompensado, integrado e reconhecido. Há sempre uma zona de autonomia relativa e um jogo de estratégias (em geral implícitas) dotadas de racionalidade «emocional», isto é, em estreita articulação com o grau de identificação do trabalhador com o grupo e com a empresa. Mesmo em ambientes de opressão, o ser humano procura preservar a sua dignidade pessoal, o seu espaço de liberdade mínimo. Para tal, é muitas vezes obrigado a esconder-se sob diversas formas de dissimulação e de disfarce, inclusive no local de trabalho. Quando o ambiente é de constante pressão, resiste contrariado e procura escapes para controlar o stress. E a produtividade ressente-se disso.

Por outro lado, esta abordagem da vida organizacional é a que melhor nos permite compreender o papel do conflito e da negociação. Com ela poderemos sublinhar a importância da participação e da construção de consensos na vida da empresa. Uma vez que existem contradições, diferenças e rivalidades identitárias (sejam elas fundadas na categoria profissional, no estatuto, na filiação ideológico-partidária, no sexo, na raça, na idade, na língua, no tipo de vínculo ou contrato laboral, ou noutra base qualquer), torna-se fundamental assumir que numa empresa – sobretudo se possuir uma dimensão média ou grande – existe diversidade interna, a qual importa saber gerir para daí beneficiar a organização no seu todo. Para isso, é necessário que tais diferenças se possam exprimir sob a forma de estruturas de representação e de participação. Se a possibilidade de representação e de associação do trabalhador não estiverem asseguradas não tem sentido falar-se em democracia ou em cidadania laboral. No entanto, apesar de esse ser um direito constitucional, sabemos bem como em Portugal ele tem sido sistematicamente pervertido no quotidiano laboral, em especial nos sectores mais expostos a condições de trabalho precárias.

Acresce que a democracia laboral, como também ficou demonstrado no estudo citado, mantém uma correlação positiva com os índices de produtividade e de participação associativa e sindical (os países nórdicos são disso os melhores exemplos, pela positiva). Em suma, a democracia e a liberdade de associação no espaço produtivo não apenas constituem direitos fundamentais, embora tantas vezes desrespeitados nas empresas, como sem eles se eterniza o despotismo das chefias e se torna impossível alcançar consensos alargados e culturas de participação, cujos resultados são decisivos na motivação dos trabalhadores, na produtividade e na inovação empresarial. Por isso, se aquelas duas filosofias do trabalho e das organizações ainda nos podem inspirar, dir-se-á que esta última é a mais compatível com uma visão democrática do trabalho, enquanto que a primeira tende a criar subserviencia medo e dependência (sobretudo em sociedades pouco dadas ao individualismo). Aqui está um assunto em que, empresários, sindicatos e comissões de trabalhadores precisam de reflectir seriamente. Não há defesa dos trabalhadores sem democracia laboral (direitos efectivos) nem modernização produtiva sem a intervenção activa e plural das estruturas representativas da força de trabalho.

 
 
pessoas
Elísio Estanque