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26-10-2007        Vida Económica
A reforma do mercado de trabalho é considerada prioritária. O trabalho da Comissão pode ser o primeiro passo nesse sentido?
Muitos estudos têm sido elaborados, quer pelos parceiros sociais, universidades e órgãos da Administração Pública. Recordo, por exemplo, o exercício desenvolvido para os Planos Nacionais de Emprego e o Livro Verde das Relações Laborais português. No entanto, há outro diagnóstico que necessita de ser aprofundado e que diz respeito à avaliação do impacto do Código do Trabalho, envolvendo os parceiros sociais, os órgãos da Administração do Trabalho, os Magistrados Judiciais e do Ministério Público e os advogados. Não conheço nenhum estudo sobre as possíveis alterações nos padrões de litigação e mobilizadores dos tribunais de trabalho. Na actualidade, existe uma certa tendência para confundir estes dois planos. O relatório pode dar um contributo. O diálogo social entre os parceiros sociais e o debate parlamentar são as sedes fundamentais para a reforma das relações laborais e do direito do trabalho.

Acha que a Comissão deve propor uma mudança profunda quanto às orientações actuais do Código do Trabalho ou um conjunto de alterações mais ligeiras? Ou seja, a reforma de fundo deve ser debatida e executada numa altura posterior?
A Comissão deverá fazer sugestões, mas as propostas nunca terão uma leitura anódina. As reformas de fundo exigem o diálogo social e o envolvimento empenhado de parceiros sociais e governo como metodologia. Todos os contributos serão bem-vindos, o mais importante é que os princípios e objectivos de quem os formula sejam claros. A reforma de fundo necessita de legitimidade parlamentar e de encontro de vontades entre os parceiros sociais. A este propósito, não pode deixar de se mencionar a simultaneidade dos processos de reforma ao nível europeu e os trabalhos do Livro Branco. A articulação entre estas tendências de reforma não é clara, mas tem tido um efeito constrangedor no debate nacional.

É verdade que até agora houve poucos avanços no trabalho da Comissão por falta de consenso entre os seus membros sobre as áreas e a profundidade das alterações a propor?
A Comissão é composta por membros de orientações diversas do ponto de vista político, científico e institucional. Desse ponto de vista foi uma experiência enriquecedora pela qualidade dos contributos e pela discussão. Os resultados foram os possíveis para uma Comissão com as características desta. Há, efectivamente, concepções muito diferentes sobre o mundo do trabalho, que se acentuaram.

Que razões determinaram a sua saída da Comissão do Livro Branco?
Foi uma decisão difícil. Fiz uma opção consciente, aquela que me pareceu mais adequada face às preocupações que sinto relativamente ao mundo do trabalho. A evolução da sociedade portuguesa dá sinais de maior fragilização e precarização da situação vivida pelos trabalhadores, sendo sinónimos de precarização das expectativas e das motivações. O relatório intercalar fixou uma matriz nascida de um consenso provisório. A metodologia seguida de privilegiar os consensos mostrou-se pouco operacional quando as divergências mais intensas e profundas começaram a evidenciar-se. Em meu entender, dificilmente se criariam as condições para recalibrar o documento, repercutindo esse novo equilíbrio no relatório final. Gerou-se, por isso, uma forte dissonância entre os meus princípios científicos, éticos e políticos e os resultados que iam sendo alcançados. Factualmente, registo como ponto muito negativo a inexistência de actas, o que foi provocando um efeito de ausência de memória relativamente aos pontos controversos e, por vezes, de interpretações diferenciadas face a factos passados. A selectividade das memórias é um mau princípio quando nos debruçamos sobre matérias de grande melindre social.

Actualmente existem duas correntes sobre as normas laborais. Uma mais proteccionista seguida no Sul da Europa e outra mais liberal adoptada pelos países anglo-saxónicos e países da Europa de Leste. Entre os dois modelos qual é que deve ser seguido por Portugal?
Em boa verdade, existem mais do que dois modelos. Tomando como referência o da flexigurança, identificam-se cinco tipos de posicionamentos. Os liberais que sempre defenderam a mercantilização das relações laborais e a sua sujeição ao princípio do mercado. Os cínicos da flexigurança, isto é, aqueles que ao abrigo das discussões sobre os re-equilíbrios entre a flexibilidade e a segurança mais não pretendem do que liberalizar o mercado de trabalho, deslaboralizar o direito do trabalho, aproximando-o do direito civil, e despolitizar as assimetrias de poder que efectivamente são constitutivas das relações sociais estabelecidas no mundo do trabalho. Os críticos da flexigurança que a consideram expressão do euro liberalismo e o prolongamento do Consenso de Washington por outros meios, palavra mágica da comitologia europeia. Os conservadores expressam as expectativas de insegurança quanto às transformações do mundo do trabalho face aos contextos de crise. É um conservadorismo defensivo e compreensível. Finalmente, os reformistas consideram necessário algum tipo de ajustamento no mundo do trabalho. O problema está em que não há um reformismo. Há vários modelos de reforma social com radicais diferenças entre si. Portugal, face ao défice de cidadania e democracia laborais, necessita de um reformismo crítico assente nos princípios de maior segurança, maior protecção para os trabalhadores e maior rigor e efectividade das normas laborais. A noção de trabalho digno da OIT tem de ser escrutinada no nosso próprio país. O debate sobre os modelos é, por isso, muito mais do que um mero exercício de escolha teórica. Acrescento que o bom senso determina que a flexigurança seja contextualizada pelas efectivas condições de vida e de funcionamento institucional do nosso país. Não é a flexigurança que faz a Dinamarca, mas sim a Dinamarca que cria as condições para a afirmação de um modelo de flexigurança. Portugal, com ou sem flexigurança, terá de encontrar o caminho da sua reforma, envolvendo o diálogo e os parceiros sociais.

Um dos pontos controvertidos do actual Código do Trabalho diz respeito ao princípio do tratamento mais favorável (art. 4º). Trata-se de matéria a ser corrigida?
O princípio do tratamento mais favorável está na génese de do direito do trabalho e dos modernos sistemas de relações laborais, trata-se de um princípio de discriminação positiva que reconhece a assimetria de poder existente entre empregadores e trabalhadores e que fundamenta a autonomia dogmática do direito do trabalho. É por essa razão que o posicionamento face ao artigo 4º revelará o sentido profundo das opções seguidas pela Comissão do Livro Branco. Também o que se venha a propor relativamente ao artigo 531º, que estabelece a relação entre a regulamentação colectiva e o contrato individual de trabalho, se afigura relevante.

 
 
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António Casimiro Ferreira