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02-07-2017        Jornal de Notícias

Mário Draghi esteve em Sintra no dia 27 de junho no Fórum da Banca Central e abriu os trabalhos com um discurso revelador. Disse-nos que desde há três anos está preocupado com a estagnação dos preços, ou mesmo deflação, na zona euro. Mário Draghi tem razões para estar preocupado. Falta perceber se essas razões decorrem da sua constatação de que os povos têm sido sacrificados em vão, ou se, sendo evidente essa injustiça e ineficácia, ele se preocupa porque ainda não inventou novos processos para assegurar futuro a este capitalismo neoliberal predador. Draghi e seus pares têm construído estratégias monetárias e financeiras que vão encanando a perna à rã e no imediato deixam os povos respirar um pouco melhor, mas as suas políticas contribuem para “o programa de sociedade” neoliberal continuar a ser consentido, quer pela passividade associada à subjugação, quer pela abstenção que atrofia a democracia.

Num contexto em que o geral das empresas vende os seus produtos a preços quase estagnados e muitos trabalhadores veem o valor do seu trabalho (salários) diminuir, uns e outros são cada vez mais exauridospelopeso da dívida no seu rendimento.

Para combater a deflação o BCE adotou uma política monetária,dita não convencional, que passa pela fixação de taxas de juros a níveis muito baixos – até negativos – e pela compra de títulos públicos e privados. Esta política tem, por um lado, impedidoque o peso dos juros no rendimento dos endividados (incluído o Estado português) se tornem insuportáveis, e por outro, tem beneficiado os detentores de propriedade imobiliária e mobiliária, ao reforçar o valor dos seus ativos (ações, obrigações, edifícios e terrenos). Entretanto, a inflação continua abaixo da meta do BCE e isso preocupa Draghi.

O governador do BCE mostra-se particularmente perplexo com o facto de os preços não aumentarem num contexto em que, em toda a zona euro, o PIB vai crescendo acima da tendência e o desemprego diminui. Procura explicações para o que designa de “situação inabitual” e adianta as seguintes:aprimeira remete para a descida dos preços da energia e de outras matérias-primas nos mercados mundiais; a segunda aponta uma maior disponibilidade das pessoas para trabalharem mais barato, em consequência dos processos migratórios e do retorno dosinativos ao mercado de trabalho; a terceira está associada à existência de um desemprego muito superior ao que é medido pelas estatísticas convencionais (segundo Draghi, uma medida mais larga de desemprego que inclua o subemprego e alguns inativos atiraria a taxa de desemprego na zona euro para 18%); a quarta – a mais surpreendente – aponta para os efeitos das “reformas estruturais” no mercado de trabalho. Disse Draghi,“o comportamento de fixação dos preços e dos salários na zona euro pode ter mudado durante a crise, de forma a abrandar a resposta da inflação (…) por exemplo,as reformas estruturais que aumentaram a negociação salarial ao nível das empresas podem ter tornado os salários mais flexíveis à descida, mas não necessariamente à subida”. É caso para perguntar: os Draghi desta Europa são tão impreparados que não saberiam que isto inevitavelmente aconteceria?

É evidente que as“reformas estruturais” do mercado de trabalho impostas pelo BCE, até como condição dos seus resgates, reduziram a capacidade negocial dos trabalhadores e dos sindicatos, avançaram num conceito de negociação assente na unilateralidade do poder patronal, obrigaram trabalhadores idosos a procurar emprego, generalizaram o trabalho barato dos jovens e forçaram a sua emigração. Entretanto, a inflação pode mesmo surgir. Resta saber se não será sob forma de uma bolha especulativa no imobiliário das grandes cidades, incluindo em Portugal.

Deixem-se de hipocrisia. Os diagnósticos há muito estão feitos, existem propostas alternativas bem fundamentadas por amplos setores técnicos e científicos passíveis de forte apoio social. Em Portugal, não se devem adiar por mais tempo a revisão cirúrgica da legislação laboral, o incremento da negociação coletiva, o combate à precariedade laboral e a promoção do emprego digno.


 
 
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Manuel Carvalho da Silva



 
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