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21-11-2007        Jornal de Notícias
Saíram na mesma altura e por razões que, em parte, coincidem. São, também, conotados com uma ala ideológica de esquerda. Júlio Gomes, professor da Católica do Porto, e António Casimiro Ferreira, docente da Faculdade de Economia de Coimbra, não combinaram o abandono da comissão que está a estudar propostas de alteração à Lei do Trabalho. Mas acabaram por bater com a porta na primeira reunião após férias, já depois de conhecido o relatório intercalar, cujo teor também contribuiu para as demissões.

Ambos insistem que não estão em causa suspeitas de má-fé ou desonestidade da parte de quem orienta os trabalhos ou escreveu o relatório intercalar. Mas os dois professores entenderam que não estavam reunidas as condições necessárias para prosseguirem os trabalhos. Reduzida a 11 elementos, a comissão continuou a trabalhar e, depois das reuniões desta semana, as propostas serão compiladas num documento final, que servirá de base ao debate sobre as mudanças à lei prometido pelo Governo aos parceiros sociais.

Consenso "mata alteração estrutural"

O relatório intercalar, apresentado no Verão pela comissão que estuda alterações à Lei do Trabalho, mencionava consensos que Júlio Gomes não se recorda de alguma vez terem sido obtidos. Mas não foi essa a principal razão invocada para ter batido com a porta. O professor da Católica discordou radicalmente do método escolhido para os trabalhos, segundo o qual um voto contra representa um veto.

Júlio Gomes ressalvou, ao longo da entrevista ao JN, a boa-fé dos líderes da comissão, como o presidente, Monteiro Fernandes "Uma pessoa que me merece todo o apreço", explica. Mas discordou da opção tomada na condução dos trabalhos. "Se se introduz na comissão pessoas de praticamente todos os espectros político-ideológicos e se espera que cheguem a consenso, então os consensos são muito pobres. Um voto ser um veto mata qualquer alteração estrutural. Quando verdadeiramente importa, a decisão tem que ser tomada por outro método", como o da maioria.

Se assim fosse, assegura, propostas "altamente benéficas para os trabalhadores" teriam passado por "clara maioria". Quais? Júlio Gomes enumerou algumas "O afastamento das cláusulas de mobilidade [generalizadas a todos os trabalhadores], o horário de trabalho não poder ser alterado unilateralmente quando estivessem em jogo necessidades familiares do trabalhador". E uma outra, que ajudaria a controlar a precariedade laboral: "A aplicação de boa parte das leis laborais a contratos de trabalho equiparados", determinando que cabe às empresas provar que determinado trabalhador a recibos verdes presta, de facto, serviços eventuais. Júlio Gomes admite que havia consenso quanto à necessidade de corrigir "minimamente" o assunto, mas não quanto a soluções. "Para milhares de empregadores, é a situação ideal", justificou.

Também no que toca aos contratos a prazo, "o consenso roçou o impossível". Por exemplo, "não há abertura praticamente nenhuma para limitar renovações sucessivas ou impor limites percentuais (faz sentido ter todos os trabalhadores a termo?)". As questões dos recibos verdes e dos contratos a prazo foram "tabus", numa "espécie de bloqueio". Nestes casos, "alguns membros da comissão diziam simplesmente 'Não se pode alterar porque não se pode'", disse, sem apontar nomes. E porquê? Júlio Gomes acredita que quem defende que o actual Código do Trabalho "seja alterado o mínimo possível adopta uma posição mais favorável aos empregadores".

Os sucessivos vetos foram desiludindo Júlio Gomes. "Fiz 54 propostas de alteração ao código logo na primeira reunião. Algumas eram só para corrigir gralhas e remissões erradas. Dessas, duas e meia foram aceites. Foi quando achei que o meu esforço estava a revelar-se inglório".

Sem actas, resta a memória Júlio Gomes reconhece uma vantagem ao método do consenso limita exageros e força à procura de soluções mais equilibradas. Mas nisso o relatório intercalar falhou, já que mencionou consensos dos quais o professor não se recorda.

O professor insistiu que houve "precipitação", "ingenuidade" ou "confusão" e nunca "má fé". E reconheceu que não leu o relatório com o cuidado devido, antes de ser enviado ao Governo, porque se tratava de um documento "preliminar" e "susceptível de revisão e revisitação". Mas ainda assim garantiu não se recordar "de todo" de algumas medidas lá mencionadas. E como, a dada altura, deixou de haver actas das reuniões, é impossível verificar quem tem razão.

É o caso da fixação em 23 do número de dias de férias e da redução do subsídio. "A ideia com que fiquei foi que interrompemos a discussão quando só havia consenso de que a situação é má", de que "é extremamente difícil distinguir as condições em que deve haver lugar" a três dias de prémio por assiduidade. Já quanto à redução do subsídio é que "nunca houve consenso".

Também o despedimento por inépcia entra na lista. Os 13 membros concordaram "que é muito difícil despedir por razões de produtividade", mas o professor esperava "contrapartidas no despedimento colectivo". Lá chegados, em reuniões seguintes, contudo, "disseram aqui nem pensar em mexer". É a terceira razão de queixa de Júlio Gomes: a negociação "por camadas", em que dava o seu acordo a uma medida esperando contrapartidas, para depois se confrontar com vetos absolutos. Ou quando aceitou desagravar as penalizações a erros de processo em caso de despedimento, sem saber que mais tarde a comissão avançaria com a redução da burocracia.

A dias de ser conhecido o relatório final, Júlio Gomes está atento. "Espero que demonstrem que conseguem um consenso favorável aos trabalhadores. Tenho esperança disso". E se assim for? "Tanto melhor, [a minha demissão] terá sido útil. Agora, eu saí porque deixei de acreditar nessa possibilidade".

Os patrões e os feriados móveis

A proposta partiu de membros da comissão conotados com uma ala ideológica mais à direita e foi um dos dois vetos de Júlio Gomes todos os feriados (sem excepção) passariam a ser gozados na segunda-feira seguinte. "Choca-me que o 1 de Maio, o 1 de Dezembro ou o 10 de Junho não sejam gozados nesses dias. Têm importância para nós como colectividade, como Nação", disse o professor. E não seria possível chegar a um consenso, em que parte dos feriados seria móvel e outra fixa? "A proposta foi apresentada como um absoluto". O segundo "veto" foi à possibilidade de negociar caso a caso o número de dias de luto a que os trabalhadores têm direito, em sede de contratação colectiva. "Um sindicato não deve dispor dos dias de falta por morte de um parente", disse.

"Dei um sinal político"

"Antes da primeira pergunta, posso fazer duas declarações? Não quero torpedear o trabalho da comissão, mas devo uma explicação sobre as razões da minha demissão". António Casimiro Ferreira, docente da Faculdade de Economia de Coimbra, contou como o relatório intercalar, apresentado como provisório e revisitável, acabou por "ganhar vida própria" e se "fixar como matriz a partir da qual se continuaria a trabalhar" após as férias. Face ao "desequilíbrio da matriz" e à metodologia que obrigava sempre ao consenso, "o que parecia possível - reequilibrar o documento - tornou-se um exercício difícil quando retomámos os trabalhos", disse.

A este factor acresce um segundo "a ausência de registo, as célebres actas" que permitiriam "justificar por que é que o documento foi o que foi e não outro", sobretudo atendendo aos diferentes "princípios éticos, políticos e científicos" dos membros da comissão. E a eventuais falhas de memória. Casimiro Ferreira recusou nomear pessoas ou assuntos concretos, mas assegurou que "vários colegas não se reconheceram ou tiveram dificuldade em precisar se o que estava no relatório era o que tinha sido afirmado".

Sem actas, e face às "insanáveis e radicais divergências de pontos de vista", Casimiro Ferreira concluiu ser "muito difícil qualquer revisitação em que pudesse contribuir de forma positiva", justificou. Ou seja, convenceu-se de que as medidas avançadas no relatório intercalar acabariam por se tornar definitivas, apesar de sempre ter sido afirmado que nada do que lá constava era decisão final.

A flexigurança implícita

O anúncio, na primeira reunião após férias, da decisão de Júlio Gomes de deixar os trabalhos foi determinante a comissão vivia de "um equilíbrio muito limitado" entre as sensibilidades dos seus membros. O abandono de Casimiro Ferreira, o segundo na ala mais à esquerda, ajudou a dar "um sinal político".

E em matéria política a flexigurança entrou em linha de conta. "Vários colegas foram sustentando um modelo de flexigurança, sendo que apenas estávamos a lidar com um dos elementos", a Lei do Trabalho, deixando de fora todos os outros, como as "medidas de política de emprego activas [apoios à contratação] e passivas [ajuda em caso de desemprego] ou o diálogo social…"

A palavra não é referida uma única vez no relatório intercalar. "Para uns, a flexigurança nunca foi tema, mas do meu ponto de vista foi focada". O certo, disse, é que "constrangeu e condicionou parte das discussões".

Casimiro Ferreira recusa a actual discussão sobre flexigurança, nos termos em que tem vindo a ser feita. "A discussão está assente só num pilar, o trabalhador. Não necessitamos de uma outra discussão? De saber que empregadores temos? Que formação têm? Quais são as boas práticas das empresas?", questiona.

O professor admite não ter lançado o tema na comissão, mas quer ver surgir uma "agenda alternativa para o debate laboral".




 
 
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António Casimiro Ferreira