O tema da justiça negociada (delação premiada ou colaboração premiada) tem estado no debate mediático muito por inspiração do processo lava jato, o mais mediático processo criminal brasileiro que está a cercar elites do poder político e económico daquele país, incluindo o atual Presidente, atoladas em processos de corrupção. A eficácia da investigação criminal deve-se, em grande medida, à delação premiada. Trata-se de uma previsão na lei de organização criminosa brasileira que permite à investigação criminal celebrar um acordo com um investigado tendo em vista obter dele informações cruciais, como, por exemplo, a identificação de outros autores e dos crimes por eles cometidos, prestando o investigado depoimento nesse sentido e fornecendo documentos, emails trocados, fotografias, gravações, extratos de contas, etc). Os investigados que aceitem celebrar o acordo recebem em troca um “beneficio” que pode ir desde a total imunidade penal até à redução substancial da pena que lhe seria aplicável. Recentemente, o jornal "Folha de S. Paulo" noticiava que, no âmbito do processo lava jato, 61 pessoas tinham, até julho de 2016, celebrado um acordo de delação premiada. Na lei portuguesa, se um arguido confessar e ou ajudar de forma relevante a investigação pode beneficiar de redução da pena, mas só no fim do julgamento (em determinado tipo de crimes, como os crimes de corrupção, branqueamento de capitais e tráfico de droga, o tribunal pode dispensar ou atenuar a pena ao arguido que colabora com a investigação). Na colaboração premiada a justiça vai mais longe ao aceitar negociar uma eventual punição, que seria aplicável a um arguido culpado, em troca de informações, podendo o arguido nem sequer ser julgado.
O debate mediático que entre nós tem vindo a ser feito sobre esta questão tem duas armadilhas que é importante evitar. A primeira tenta levar a questão para uma equação de soma zero, colocando, de um lado, os defensores da medida e a eles colando o combate intransigente à corrupção e, do outro, os que enunciam dúvidas e cautelas, rotulando-os de defensores de princípios de direito a qualquer custo acima do flagelo da corrupção. É certo que em muitos países existem instrumentos jurídicos para “premiar” os arguidos que aceitem colaborar com as autoridades na investigação criminal, designadamente, no âmbito do crime organizado. Mas, por vários fatores, essas soluções não estão isentas de controvérsia (não deixa de ser chocante que muitos dos implicados num dos maiores roubos à escala global – a manipulação da taxa Libor – tenham beneficiado deste instrumento escapando à punição). Pelas suas implicações no sistema jurídico e na sociedade, a introdução desses instrumentos deve convocar um debate informado e socialmente alargado.
Uma segunda armadilha ancora-se na ideia de que esta é a medida para resolver o problema da ineficiência e da morosidade dos processos de criminalidade económico-financeira. Esta armadilha é particularmente perigosa porque potencia o adiamento do debate sobre uma política pública, verdadeiramente consequente, de prevenção e combate àqueles fenómenos criminais. E esse debate deve assentar numa pedagogia de avaliação, quer de medidas anunciadas e ou que deveriam ser desenvolvidas pelo poder político, quer do desempenho funcional da ação da justiça. Há muitas questões a interpelarem essa avaliação, cujas respostas são fundamentais para a definição dessa política pública. Deixo aqui algumas. Em matéria de prevenção: qual o grau de efetivação das recomendações do grupo GRECO; que propostas foram desenvolvidas pela Comissão Eventual para o Reforço de Transparência no Exercício de Funções Públicas e qual o seu impacto; que programas, no âmbito da educação e sensibilização contra a corrupção, em especial em meio escolar, têm sido desenvolvidos e qual a sua avaliação; o poder político fez algum levantamento sobre quais os serviços públicos menos transparentes e sobre quais em que há mais denúncias de corrupção e se fez que medidas foram tomadas; qual a avaliação das medidas propostas pelo Conselho de Prevenção da Corrupção. No campo da ação da justiça penal, é fundamental conhecer, em detalhe, e debater os fatores que estiveram no lastro do tempo dos principais processos de criminalidade económico-financeira. Por exemplo, quais foram exatamente os atos processuais e qual o tempo de cada um deles que levaram que o processo em que era arguido Dias Loureiro demorasse cerca de 8 anos na fase de investigação? Que razões, em concreto, justificaram o arrastamento, por mais de seis anos, na fase de julgamento, do caso BPN? E que fatores estiveram no lastro da eficiência do caso face oculta? Está a mesma metodologia a ser aplicada a outras investigações? Todas as opiniões técnicas em matéria de investigação da criminalidade complexa, designadamente da corrupção, apontam para a importância de equipas multidisciplinares, especializadas e altamente treinadas. Dadas as suas competências, esse investimento seria feito na Polícia Judiciária. É assim? E se é porque não está esta Polícia envolvida em todos os grandes processos de criminalidade económico-financeira?
Os milhões de Euros que todos os anos estarão a ser subtraídos à nossa comunidade convocam um combate sem tréguas à designada criminalidade de colarinho branco. Exige-se, por isso, um amplo debate, não sobre medidas avulsas, mas sobre o desenvolvimento de uma política pública consequente que olhe para o problema numa perspetiva abrangente.