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06-12-2007        Le Monde Diplomatique
Um dos problemas que mais seriamente se coloca às sociedades contemporâneas é o da relação das pessoas com o trabalho. O séc. XIX e boa parte do séc. XX construíram-se segundo uma matriz sociológica onde o trabalho se assumiu como bem e valor central. Foram sociedades do trabalho, no sentido de que era através dele que se acediam aos direitos de cidadania social e se projectavam os mecanismos sociológicos de integração e solidariedade sociais. A emergência do desemprego, nomeadamente do desemprego em massa nos anos 70 constituiu um golpe violento para as sociedades ocidentais habituadas a estruturarem-se em torno do trabalho e dos modos da sua regulação. Os anos oitenta e noventa do século passado evidenciaram as formas insidiosas de desemprego, de dissociação dos cidadãos face às suas sociedades e sublinham as diferentes formas de discriminação e de falta igualdade na distribuição e acesso ao mundo do trabalho entre diferentes grupos sociais (jovens, mulheres, trabalhadores mais velhos, trabalhadores migrantes, minorias étnicas e sexuais).
A desvinculação dos indivíduos e dos grupos face às sociedades marcadas pela ausência de um vínculo de laboralidade incentivou a busca de medidas orientadas para a promoção do emprego, reforço da coesão social e relevância do trabalho para os estilos de vida das pessoas.
As primeiras medidas pautaram-se por um critério de raridade, isto é, mais vale um qualquer tipo de ligação ao mercado de trabalho do que o desemprego, tendo sido substituído nos anos noventa pelos ideais subjacentes aos diferentes modelos sociais (europeus ou nacionais) através do recurso a critérios de ligação à qualidade e dignidade do trabalho. A OIT, com a noção de trabalho digno, marcou a evolução dos direitos humanos do trabalho, enquanto a Estratégia Europeia para o Emprego (da primeira ou da segunda fase) sublinhavam a importância da qualidade do emprego ou do trabalho.
Importa sublinhar que estas duas tradições da laboralidade contemporânea não são sobreponíveis. O paradigma dos direitos humanos do trabalho, ligado ao trabalho digno e à dimensão social da globalização, conduz-nos às preocupações com uma ética renovada da solidariedade e competitividade responsáveis, enquanto os avatares dos modelos sociais propenderam a sublinhar os objectivos da produtividade e competitividade, cuja tradução nas relações laborais começou por designar-se "adaptabilidade das empresas e dos trabalhadores", travestindo-se, já na década de noventa, na noção de flexigurança.
O modelo de flexigurança em si mesmo é um exemplo interessante de conceptualização das relações laborais, envolvendo dimensões de flexibilidade, facilidade dos despedimentos, de padrões elevados de protecção social e de políticas activas de emprego.
As lições da flexigurança dinamarquesa constituíram a expressão simbólica e unidimensional de um projecto ao qual se não encontravam alternativas políticas e conceptuais, tendo daí resultado um enviesamento no debate público e político. A OCDE e a UE, com a sua soft law comitológica, foram tornando desnecessária a aplicação do imperativo da justificação ou mesmo dos princípios da precaução e prevenção relativamente às consequências da aplicação do modelo.
O aparente sucesso dos exemplos dinamarquês e holandês neste domínio certificavam o modelo da flexigurança, tornando desnecessárias dúvidas ou a ponderação das especificidades das diferentes realidades nacionais.
Do ponto de vista político, o modelo é de elementar simplicidade. Trade off entre o princípio liberal aplicado ao mercado de trabalho, nomeadamente nos factores de flexibilidade interna ou externa, com especial destaque para a agilização do despedimento e externalização dos custos das empresas para os mecanismos de protecção social de raiz social democrata. Rapidamente, os liberais entenderam que o conceito correspondia à aplicação do princípio do mercado aos mercados de trabalho (afinal de contas, o trabalho sempre é uma mercadoria), considerando os críticos a noção expressão do euro liberalismo e prolongamento do Consenso de Washington e expressando os conservadores as expectativas de insegurança quanto às transformações em curso. As posições mais complexas surgiram por parte dos cínicos da flexigurança, tornada janela de oportunidade para a liberalização das relações laborais e realizar o trade off entre o direito do trabalho e o direito civil, ainda que podendo defender (retoricamente) o princípio da segurança, e por parte dos reformistas que nas suas abissais diferenças parecem não encontrar os consensos básicos à necessária reforma das relações laborais e do direito do trabalho.
O que os defensores da flexigurança gostam de sublinhar são as virtualidades dos mecanismos de protecção social que se lhe encontram associados, a importância do indivíduo enquanto portador de um projecto singular que alimenta a sua autonomia, deixando acontecer as boas transições nos mercados de trabalho e sobretudo a possibilidade de tornar a Europa num espaço competitivo e produtivo que sabe responder aos desafios da globalização económica através da flexibilização e adaptabilidade de empresas e trabalhadores.
Duvidas? Parece que não. No entanto, há temas menos frequentes ou mesmo omissos das grandes discussões públicas e políticas em torno da flexigurança. Por exemplo, "salvar-se-á" o mercado de trabalho pela aplicação instrumental de um modelo cuja raiz é intensamente sociológica e não tem vida para além da sociedade que o permite? Que condições de sustentabilidade são necessárias à sua aplicação e o que sucederá em caso de instabilidade dos factores estruturais, económicos e financeiros de que depende o modelo? E o que dizer da democracia, cidadania e participação nas empresas? Não possuindo os países as mesmas taxas de sindicalização e de envolvimento na vida das empresas, não será a flexigurança uma ideologia da individualização dos riscos sociais aqui distribuídos pelo olhar discricionário dos empregadores? Quem fica de fora desta recontratualização? Os grupos que já são mais vulneráveis? Ainda necessitaremos do Direito do Trabalho e do controlo judicial na esfera laboral? Será possível construir situações de real confiança entre os indivíduos e organizações de modo a construir relações sociais assentes no princípio da dignidade da pessoa humana e na experiência vivida da igualdade, da liberdade, do respeito e da justiça social? Não terá a Dinamarca fraquezas na sua configuração de flexigurança? Para alguns não será importante, mas os partidos de direita tendem a hegemonizar o sistema político dinamarquês desde que a flexigurança foi implementada! E a orientação xenófoba e o desigual tratamento dado aos trabalhadores imigrantes? E o peso das correntes populistas e a cartelização dos interesses?
Enfim, o que mais me preocupa é o conhecimento da nossa fragilidade enquanto seres humanos e o modo como ela pode ficar sujeita ao olhar discricionário dos que podem escolher apenas aquilo que querem ver. A cada um, segundo as suas capacidades, de acordo com o puro princípio meritocrático ou o reconhecimento das capacidades necessárias para que os cidadãos sejam igualmente livres, diferentes e iguais.
Mas, afinal de contas, o mundo do trabalho necessita de encontrar modelos de reforma? Importa reencontrar-se o trabalho não só como antónimo de desemprego, mas como factor de integração e coesão sociais. A resposta positiva é o desafio que se coloca para quem o trabalho continua a ser central nas nossas sociedades contemporâneas. A globalização tanto homogeneíza padrões de competitividade selvagem, como pluraliza condições de trabalho. Falar em competitividade responsável ou em dimensão social da globalização é recorrer ao bom senso dos que têm responsabilidades para afectar a vida dos outros. Mas também é certo que a diversidade de situações laborais só pode ter um denominador comum, o da dignidade da pessoa humana escrutinada por factores democráticos e pelo menos – ao menos isso – tornando efectivos os direitos humanos do trabalho emergentes da noção de trabalho digno, aplicando-os globalmente.
Resistirá a flexigurança a este desafio ou mostrará a face Hyde de flexexploração? Será a flexigurança flexiprotecção ou flexinsegurança? Estaremos ainda a tempo de promover uma discussão serena em torno de um símbolo político alimentado por agências internacionais de interesses como a OCDE?
Numa linha crítica de que o Parlamento Europeu fez eco, o último parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre flexigurança, aprovado a 11 de Julho de 2007, oferece-nos alguma esperança na medida em que faz apelo às dimensões esquecidas pelo Livro Verde "Modernização do Direito do Trabalho para enfrentar os desafios do séc. XXI", ao reforçar a importância do diálogo social e da negociação colectiva e ao relativizar a importância atribuída à flexibilidade externa, chamando a atenção para os resultados dispares sobre o seu impacto na taxa total de emprego, tal como se patenteia pelos estudos aí citados da OCDE e da OIT. Acrescem ainda as matérias relacionadas com a igualdade entre homens e mulheres e solidariedade intergeracional.
Não importa demonizar o conceito. O mais relevante é reflectir sobre o não dito, o esquecido, intencionalmente ou não. Em Portugal, o reformismo crítico das relações laborais e do direito do trabalho necessita, antes de mais, de partir da realidade do mercado de trabalho e da vida das empresas. Atipicidade, precaridade, desajustamento da organização do trabalho, falta de profissionalismo na gestão das empresas, excessiva dependência do Estado e comportamentos de fuga ao quadro legal patenteiam os desequilíbrios de um mundo do trabalho anómico e com patologias graves do ponto de vista cívico.
Sugestões? Aqui ficam algumas: o incremento da dimensão local das relações laborais, descentralizando e territorializando o diálogo social, a promoção activa de pactos de confiança criados na base de uma legitimidade renovada por parte de sindicatos e associações patronais, o reforço da formação e qualificação de trabalhadores e de empregadores, a transformação da economia informal e trabalho não declarado em emprego estruturado, a intervenção preventiva do Estado na negociação colectiva sem pôr em causa os parceiros sociais e, por fim, o mais fácil ou mais difícil, dependendo do ponto de vista, a aplicação do quadro legal vigente com algumas alterações cirúrgicas, mas onde a efectividade das normas seja real, explorando responsavelmente as possibilidades consagradas de flexibilidade e segurança já previstas.

 
 
pessoas
António Casimiro Ferreira