Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
10-08-2000        Visão
Escrevo esta crónica no Maputo onde vim apresentar o relatório de um projecto de investigação realizado nos últimos três anos por uma equipa de quatro investigadores portugueses e de quatro investigadores moçambicanos que eu dirigi conjuntamente com um colega moçambicano. O tema da investigação foi a análise sociológica do sistema judicial oficial e de outros mecanismos de resolução de litígios durante o período da transição democrática que Moçambique tem vindo a viver. Pode parecer um luxo descabido tratar deste tema num país com tantas necessidades básicas por satisfazer e ainda há pouco fustigado pelas cheias que fizeram perigar o frágil processo de desenvolvimento económico e social. Contudo, se se pretende que a satisfação das necessidades básicas seja construída como uma questão de direitos humanos e que o desenvolvimento, além de capitalista, seja democrático, o acesso à justiça e a garantia efectiva de direitos terão de ser entendidos como pilares fundamentais do projecto social.
Quero chamar a atenção para três observações de interesse geral. A primeira diz respeito ao modo como foi concebido e realizado este projecto, um projecto binacional e multiracial, levado a cabo por moçambicanos, negros e brancos, e por portugueses, em que a escolha dos temas foi objecto de decisões partilhadas e as análises e interpretações resultaram de discussões intensas. Foi um projecto de construção difícil em que pelo caminho houve que enfrentar diferenças e preconceitos culturais (europeus/moçambicanos), raciais (negros/brancos), políticos (neocolonialismo científico/póscolonialismo). Os resultados do trabalho atestam a possibilidade de vencer com êxito estes obstáculos e constituem um comentário oportuno à demagogia racista que tem vindo a ganhar força entre uma certa elite política e intelectual moçambicana. A africanidade só faz sentido como supra-etnicidade e nunca como super-etnicidade. Moçambique é de há muitos séculos um lugar de encontro de culturas e é esse o único lugar onde pode pensar o seu futuro.

A segunda observação tem a ver com o modo como nas sociedades contemporâneas, mesmo nas que evoluem de modo mais turbulento, se acumulam resistências à mudança e continuidades insuspeitadas. Nos últimos trinta anos Moçambique viveu períodos de guerra e de paz e passou por três modelos de desenvolvimento: o colonial, o socialista-revolucionário e o capitalista-democrático. No entanto, o sistema judicial oficial, a legislação em vigor e a formação e cultura jurídicas dos magistrados, têm profundas continuidades com a herança colonial e, nestas condições, é muito difícil pensar em soluções próprias, moçambicanas, adequadas à realidade do país e às aspirações do seu povo.

A terceira observação diz respeito ao modo como, ao lado desta oficialidade um tanto estagnada e distante dos cidadãos, a sociedade civil vai dando provas de grande criatividade, multiplicando-se em alternativas de resolução dos litígios que asseguram a paz e a ordem, a decência e a previsibilidade nas comunidades: dos tribunais comunitários às autoridades tradicionais, das associações de ajuda mútua às igrejas. Trata-se de formas organizativas que extravasam dos modelos eurocêntricos de sociedade civil e de democracia participativa. Mas não estará aí a possível contribuição de África, tão humilhada pela globalização neoliberal hegemónica, para a renovação do pensamento político?

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
temas
África