Tendo como pano de fundo as eleições legislativas britânicas, a The Economist sintetizou assim a história recente da economia política do país: “Nos últimos quarenta anos, o Reino Unido foi dominado pelo neoliberalismo, um credo que procurou adaptar algumas das posições do liberalismo clássico do século XIX a um mundo onde o papel do Estado tinha aumentado”. Esta constatação de facto foi acompanhada pelo mais parecido que o eleitor encontrará ali com uma autocrítica, ou não estivéssemos perante uma revista que condensa semanalmente os argumentos neoliberais sobre tudo que é humano, tendo uma forte influência ideológica em tantos editoriais em Portugal.
As “mudanças sísmicas” associadas ao Brexit e ao suposto abandono da herança de Margaret Thatcher pelos dois principais partidos seriam então uma resposta aos “fracassos do neoliberalismo”: da maior crise financeira desde a Grande Depressão ao aumento significativo das desigualdades de rendimento e de riqueza, passando por privatizações que geraram piores e mais caros serviços públicos, mas mais lucros privados, tornando popular a renacionalização de vários sectores.
Entretanto, é de registar o inusitado rigor analítico com que o termo neoliberalismo é usado, em linha com o melhor conhecimento nas ciências sociais e humanas, mas em contraste com a repugnância que tal termo ainda causa na ignorante ou cínica sabedoria convencional. O neoliberalismo é de facto a visão do mundo hegemónica nas últimas quatro décadas entre as elites e não só. As suas origens intelectuais remontam aos anos trinta do século XX, começando por ser um esforço minoritário para renovar o liberalismo clássico, tentando dissociá-lo das ideias do laissez-faire e do Estado reduzido a um guarda-nocturno, consideradas incapazes de fazer face aos vários “colectivismos” desglobalizadores que floresciam num contexto de crise generalizada.
A intuição central é a de que a reconstrução da ordem capitalista terá de ser o produto de um exercício deliberado de poder político, exigindo intervenções constantes para criar e manter mercados, idealmente exercidas por elites tecnocráticas protegidas da refrega democrática. Tais intervenções passariam pela privatização de activos, pela liberalização e re-regulação financeiras e comerciais conformes à expansão global dos mercados. A liberdade reconquistada de circulação de mercadorias e de capitais exerceria por sua vez um efeito disciplinador sobre os Estados, limitando a democracia, obrigando-os a desenhar políticas monetárias e orçamentais em consonância com os interesses das fracções mais extrovertidas do capital.
No entanto, o neoliberalismo foi bem para lá destas últimas opções de política, hegemónicas a partir dos anos oitenta. Tratava-se, e trata-se, também de pensar um lugar para outras intervenções supletivas do Estado, capazes de corrigir eventuais falhas dos mercados em algumas áreas, afirmando a ideologia da concorrência mercantil. Alguns exemplos: na educação defende-se a separação do financiamento, pelo menos parcialmente público, da provisão, fundamentalmente privada, favorecendo assim o capitalismo educativo; no ambiente, corrige-se, supostamente, as chamadas externalidades negativas, como a poluição, com a criação de mercados para as emissões; na política social, defende-se a substituição dos direitos sociais universais por intervenções selectivas e dirigidas, com menor impacto redistributivo. E assim sucessivamente. Sendo um ismo em última instância utópico, o neoliberalismo está sempre por realizar, de forma acabada, na prática.
Margaret Thatcher sintetizou de forma impar o que está em causa: “a economia é o método, o objectivo é mudar a alma”, ou seja, convencer-nos de que “a sociedade como tal é coisa que não existe, só existem indivíduos e as suas famílias”, imersos em mercados, incluindo os financeiros, cada vez mais importantes, forçados a aceitar os seus resultados, por mais iníquos que sejam. Para tal foi e é necessário enfraquecer decisivamente todas as formas de acção colectiva que funcionem como freio e contrapeso, em particular os sindicatos, esteios dos direitos de cidadania social, que proclamaram desde o pós-guerra, em tantos países, que a força de trabalho não pode ser tratada como se fosse uma mercadoria. De Thatcher às troikas, passando por Pinochet no Chile, a consistência é espantosa. A austeridade é só um dos meios disponíveis.
Tendo sido também responsável, através dos comissários britânicos, pela construção do mercado único europeu nos decisivos anos oitenta, a elite dominante no Reino Unido decidiu ficar de fora da moeda única, dado que tinha confiança no seu poder, não precisando de mais mecanismos disciplinares externos. Afinal de contas, Thatcher tinha declarado que o seu maior triunfo era o novo trabalhismo de Tony Blair, ou seja, a ausência de alternativas. As mais inseguras elites do continente, em particular da França e do Sul, viram no Euro um meio de reforçar a integração supranacional, entregando poderes soberanos decisivos a instituições pós-democráticas e que tinham no seu ADN as regras económicas ortodoxas do ordoliberalismo, ou seja, da versão alemã deste paradigma.
Para lá da força dos interesses, o lastro institucional deixado pelo neoliberalismo, em particular na escala supranacional, é uma das razões para a sua resiliência, para a dificuldade em reverter regras que transferem sistematicamente recursos de baixo para cima, mesmo depois dos desastres comprovados. Este é um dos puzzles hoje debatidos na economia política. Creio que a convicção, partilhada por muitos dos seus supostos adversários, de que a globalização, em geral, e as suas expressões radicais no continente europeu são irreversíveis, também é parte da explicação para a dificuldade experimentada. Assim, não há mesmo alternativas decentes para os povos.
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Nota. Este artigo sintetiza alguns argumentos de um capítulo escrito para o livro Economia com Todos, que assinala os dez anos do Ladrões de Bicicletas, blogue de economia política crítica.