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07-09-2000        Visão
O que hoje designamos por globalização neoliberal é a versão mais recente da dominação que a Europa, desde há cinco séculos, a América do Norte, desde há um século, e o Japão, desde há quatro décadas, exercem sobre o resto do mundo. As versões anteriores foram o colonialismo e o imperialismo. Em qualquer destas versões, a dominação assumiu duas formas principais: exploração e opressão. Qualquer delas começou por ser exercida no interior dos países desenvolvidos e foi depois difundida no sistema mundial. A diferença entre as duas formas é a seguinte. No caso da exploração, há uma relação directa e desigual entre o explorador e o explorado, e de tal modo que o explorador não existe sem o explorado. A relação entre o senhor e o escravo e entre o patrão e o operário foram nos últimos séculos as duas grandes formas de exploração. No caso da opressão, a relação desigual não é directa e sim estrutural, e por isso nem o opressor precisa do oprimido, nem o oprimido sabe muitas vezes quem é o opressor. Um desempregado, um deficiente, um camponês autónomo, uma mulher, um membro de uma minoria étnica ou religiosa podem ser oprimidos sem serem explorados. A nível mundial, entre as classes dominadas, os explorados foram sempre um pequeno grupo quando comparado com a massa dos oprimidos, e as classes dominantes dos países desenvolvidos temeram sempre mais os explorados que os oprimidos. Os explorados foram o motor do sistema, enquanto os oprimidos foram um resíduo descartável.

O que há de novo na globalização neoliberal é a fusão tendencial entre explorados e oprimidos. Transformado o trabalho num recurso global, tornou-se tão fácil explorar que os explorados deixaram de ser uma ameaça e passaram a ser tão descartáveis quanto os oprimidos. Por isso, as classes dominantes nunca foram tão arrogantes como hoje, nem nunca temeram tão pouco o fim dos seus privilégios. Mas como a história tem razões que a razão dominante desconhece, os oprimidos, sobretudo os do chamado Terceiro Mundo, têm vindo a transformar-se nas últimas décadas numa fonte insuspeitada de temores e ameaças. Saliento três. A primeira ameaça é a SIDA. Desde que, segundo se crê, nos anos 40, um caçador na África Central recebeu de um macaco o HIV, a África sub-sahariana transformou-se gradualmente numa bomba relógio: 15 milhões de mortos e 70% da população mundial de seropositivos. A ameaça reside no perigo da propagação alargada da epidemia ao mundo desenvolvido e nos prejuízos para os negócios que este último pretenda expandir em África.

A segunda ameaça são os imigrantes clandestinos. Como bem demonstra a nova lei sobre a imigração ao selar a sorte dos emigrantes ao contrato de trabalho, o emigrante só interessa à Europa enquanto explorado; o emigrante oprimido, em busca de uma vida melhor, é uma ameaça. Felizmente, a imigração clandestina encarregar-se-á de pôr cobro a esta hipocrisia. A terceira ameaça são os mosquitos portadores de doenças, que viajam hoje tanto de avião quanto os executivos das multinacionais. A Organização Mundial de Saúde acaba de lançar o alerta contra "a malária de aeroporto", e quem viaja de África para a Europa já se habituou ao ritual do Primeiro Mundo a defender-se do Terceiro Mundo pela mão das hospedeiras, que percorrem a cabine do avião empunhando latas de insecticida. Apesar disso, a malária e o dengue chegam ao centro do mundo pela internet dos oprimidos. A SIDA, os emigrantes e os mosquitos não são uma perversidade. São a consequência normal de uma globalização perversa.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos