Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
11-01-2001        Visão
Sempre vivemos em sociedades de risco; o que mudou ao longo dos séculos foram os tipos de risco e os modos de os prevenir ou de lhes minimizar as consequências. Durante muitos séculos a produção de riscos teve pouco ou nada a ver com a protecção contra os riscos. Nos últimos duzentos anos, à medida que se foi caminhando para "uma sociedade totalmente administrada", a produção do risco e a protecção contra ele foram-se vinculando mais e mais uma à outra. Ou seja, as instâncias que produziram o risco foram as mesmas a que se recorreu para proteger contra o risco.

Duas dessas instâncias merecem destaque: o Estado e a ciência. Ao promover o capitalismo, o Estado produziu ou sancionou muitos dos riscos sociais (fome, desemprego, criminalidade, doença, falta de habitação) que, paulatinamente e por acção de múltiplas lutas sociais, foi chamado a prevenir ou a atenuar nas suas consequências mais corrosivas. O Estado-Providência culminou esse processo de gestão controlada de riscos sociais. Por seu lado, ao converter-se em tecnologia e à medida que a tecnologia foi penetrando em mais áreas da vida social, a ciência passou a estar na origem dos riscos da chamada "sociedade tecnológica" e foi igualmente à ciência que se foi recorrendo mais e mais para encontrar soluções de eliminação ou de contensão dos riscos produzidos. O desenvolvimento destes processos levou a uma vinculação recíproca entre o Estado e a ciência. O Estado recorreu cada vez mais à ciência para proteger contra os riscos e, no processo, a ciência politizou-se. Ao contrário do que muitos previram, desta vinculação recíprocra não resultou uma mais eficaz protecção contra os riscos. As três últimas décadas são amplo testemunho disso.

Ao promover a passagem do capitalismo nacional para o capitalismo global, o Estado aumentou a sua capacidade de produzir riscos sociais na mesma medida em que perdeu capacidade para proteger contra eles. Por seu lado, o extraordinário avanço tecnológico veio revelar uma debilidade estrutural da ciência: o facto de que a sua capacidade para produzir novas tecnologias é imensamente superior à sua capacidade para prever as consequências sociais dessas tecnologias. Entramos, assim, num novo milénio com um Estado enfraquecido na sua capacidade de protecção e com uma ciência cada vez mais incerta a respeito das suas consequências. Para tentar disfarçar as suas incapacidades recíprocas, o Estado e a ciência procuram vincular-se mais e mais um ao outro, desculpando-se um com o outro. Assim, o Estado fraco é cada vez mais científico e a ciência incerta é cada vez mais política. As ilustrações deste fenómeno inquietante abundam: as vacas loucas, os organismos geneticamente modificados, o "impacto" ambiental, as radiações de urânio empobrecido, os riscos para a saúde pública da co-incineração de resíduos industriais perigosos, etc., etc.

Dado o muito que está em causa, nem o Estado pode ser deixado aos políticos nem a ciência pode ser deixada aos cientistas. O Estado será mais eficaz se assumir a participação activa dos cidadãos como o seu principal critério político. A ciência será mais eficaz se assumir a incerteza: se for mais aberta à pluralidade de opiniões no seu seio e menos arrogante em relação ao saber-testemunho dos cidadãos que sofrem na pele as consequências da sua imprevisão.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos