Na noite das eleições o Presidente reeleito desafiou os políticos e os sociólogos a analisarem o fenómeno da abstenção. O apelo foi ouvido e a resposta não se fez esperar. Uma semana depois estava constituída uma sociologia espontânea da abstenção. Em seus termos, os cidadãos não votam porque acham os políticos demasiado distantes, insensíveis ou irrelevantes e não acreditam que possam melhorar as coisas com o seu voto. Trata-se de uma conclusão óbvia e é por isso que esta sociologia, além de espontânea, é instantânea. Só que ela nada explica e de pouco ou nada serve para alterar o que precisa de ser alterado. É, aliás, por isso que esta sociologia é tão consensual.
Proponho uma sociologia alternativa. O acto de abstenção é um acto de boicote individual às eleições. A diferença entre o boicote individual e o boicote colectivo é que, no caso deste último, são facilmente identificáveis as suas causas próximas. No boicote individual a acumulação de causas é muito mais complexa e a sua identificação exige métodos de investigação adequados. Os cidadãos atribuem pesos diferentes a diferentes causas e diferem quanto aos patamares de alienação acima dos quais respondem com a abstenção. Esta investigação deverá ser orientada segundo duas hipóteses de trabalho. A primeira é a do peso da palavra. Visa captar os cidadãos que são sobretudo sensíveis às palavras dos políticos, independentemente de estarem ou não de acordo com as suas acções. Sujeitam os políticos aos mesmos critérios de fiabilidade e de credibilidade que impõem aos amigos e colegas de trabalho: as promessas são para se cumprir, e quem viola uma dada promessa dificilmente poderá cumprir outra que faça. Neste grupo cabem os cidadãos que se sentiram alienados ao ouvir o candidato Jorge Sampaio prometer fazer o contrário do que tinha feito nos cinco anos anteriores.
A segunda hipótese é a do ferro e da borracha. Visa captar os cidadãos que são sobretudo sensíveis à dualidade de critérios de actuação: firmeza e dureza de ferro para com os cidadãos comuns, ductilidade e moleza de borracha para os cidadãos poderosos. Nesta hipótese é preciso distinguir dois tipos de cidadão. Por um lado, o cidadão que se ofende com a dualidade nas decisões "não políticas". Por exemplo, aquele que se sente alienado ao verificar que, em 1999, 82% da população prisional possuia um nível de escolaridade igual ou inferior ao ensino básico e só 3 presos tinham um curso superior, em contraste com a prescrição sucessiva dos crimes dos poderosos (na semana passada, o processo Partex, fraude de 7 milhões de contos). Por outro lado, o cidadão que se ofende com a dualidade de critérios nas decisões políticas. Por exemplo, não se surpreende com a dureza do Governo ao submeter populações pobres e doentes ao risco adicional da co-incineração e "sabe" que, no caso da reforma fiscal, dada a oposição do capital, ou irá mudar o ministro ou a lei (ou ambos, como aconteceu com o João Cravinho quando tentou afrontar o poder da construção civil).
Esta investigação permitirá testar qual das duas hipóteses se confirma e com que intensidade. A luta contra a abstenção há-de partir dessa constatação e não de soluções de engenharia constitucional.