Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
22-02-2001        Visão
O Estado português tem uma longa tradição do que designo por Estado paralelo, ou seja, uma discrepância mais ou menos pronunciada entre os quadros legais e as práticas sociais, entre o que dizem a lei e o Estado, enquanto aplicador formal da lei, e o que ocorre na realidade por omissão, conivência ou tolerância do Estado, quando não por iniciativa do próprio Estado. Contra o pano de fundo da cultura política autoritária que dominou quase todo o nosso séc. XX, as duas ondas de modernização legislativa por que passou Portugal nos últimos 25 anos (o 25 de Abril e a integração na União Europeia) tiveram um forte cunho democrático, com a consagração avançada de direitos de cidadania e a promoção de relações transparentes e participativas entre cidadãos e suas organizações, por um lado, e o Estado e a administração pública, por outro. Uma das áreas de modernização que mais choca com a tradição autoritária e fascizante é a área do direito de acesso à informação e da consequente transparência da administração pública. Talvez por isso é esta hoje uma das áreas em que o Estado paralelo assume proporções mais preocupantes.


Para além de outros dispositivos legais, a Lei 65/93 de 26 de Agosto consagra um amplo direito de acesso aos documentos da administração pública. No caso de documentos administrativos não nominativos, o acesso é quase irrestrito e apenas condicionado quando puser em risco a segurança interna ou externa do Estado. Esta orientação legislativa corresponde à vontade política do Governo. Em discurso de 10 de Maio de 2000, o Ministro da Reforma do Estado e da Administração Pública, Alberto Martins, afirma que "na matriz do poder que o Estado coordena... estão os cidadãos, cada vez mais exigentes e informados que esperam uma Administração eficiente e que publicite o que faz e o que pretende fazer. Que diga, sistematicamente, como faz e de que modo". Acontece, porém, que em muitas áreas da administração pública, nomeadamente da saúde pública e do meio ambiente, a prática administrativa e política colide frontalmente com a lei e as declarações políticas gerais.

O caso mais caricato de secretismo administrativo passa-se na área da incineração de resíduos tóxicos, quer dos sistemas instalados, quer do projecto, actualmente em discussão pública, da co-incineração de resíduos industriais perigosos em cimenteiras. Depois de terem sido tratados por especialistas dados públicos (note-se, públicos) sobre o estado de saúde da população de uma das localidades onde se pretende realizar a co-incineração, a respectiva Administração Regional de Saúde, não só está a impor a lei da rolha à divulgação de quaisquer outros dados adicionais, como chega ao ridículo (perigoso para quem é vítima dele) de fazer caça às bruxas no sentido de identificar o responsável pela "fuga" dos dados (públicos, note-se de novo). Mas o ridículo atinge o paroxismo quando, em reuniões internas, se dão ordens para daqui em diante se fazerem estatísticas exclusivamente com "indicadores devidamente autorizados". Será que os dados de saúde pública afectam a segurança externa ou interna do Estado? Pelo contrário, é a segurança dos cidadãos que é posta em causa pela não divulgação dos dados. Esta conivência fascizante entre os Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente desmente tudo o que o Governo tem vindo a dizer sobre a transparência da administração. É o Estado paralelo a funcionar em pleno.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos