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08-03-2001        Visão
O debate em curso sobre a ratificação do Tribunal Penal Internacional é importante não tanto pelas questões jurídicas e constitucionais que levanta, mas pelo que nele se revela sobre o nosso imaginário colectivo e a nossa identidade como nação, e o modo como nos apropriamos deles consoante os interesses e as circunstâncias. Raramente estes rios subterrâneos afloram no debate político apesar de sempre lhe alimentarem as raízes. Isto acontece porque o debate político é muito codificado tanto na linguagem como no horizonte de posições que legitima. Tudo o que extravasa do código é facilmente descredibilizado por irrelevante, despropositado ou senão mesmo ofensivo. Só assim não sucede nos raros casos em que o debate político é surpreendido por uma questão que escapa à codificação. Quando o código vacila deixa-se inundar pelo magma social. É isto o que está a suceder no caso do TPI.


A ninguém escapará que as posições sobre o TPI não se quadram com o dualismo básico do código político: esquerda e direita. As diferenças de opinião atravessam tanto a esquerda como a direita, dando lugar a convergências e divergências surpreendentes. Isto não significa que a posição sobre o TPI esteja para além ou acima da divisão esquerda/direita. Significa apenas que nem a esquerda nem a direita conseguiram até agora codificar o que está em causa no TPI. Não surpreende que assim seja. Tanto a esquerda como a direita constituíram as suas identidades por referência ao Estado e à sociedade nacionais e têm, por isso, dificuldade em codificar uma instituição que, sendo o embrião de uma governação e de um espaço público transnacionais, interfere com as matrizes nacionais de referência.

É uma circunstância propícia à emergência do nosso imaginário colectivo povoado pela nossa diferença em relação aos demais povos europeus e pelos nossos brandos costumes ensopados num caldo de humanismo cristão conservador. Como todo o imaginário, é selectivo e discriminador: privilegia a precedência histórica na abolição da pena de morte e o carácter incruento das convulsões políticas de que não se esquece; branqueia a ditadura, os seus crimes e a guerra colonial; faz vista grossa às violações dos direitos humanos dos trabalhadores, dos imigrantes, das minorias, dos doentes em lista de espera e dos presos em prisão preventiva. Este imaginário é apropriado diferentemente pelos diferentes participantes no debate sobre o TPI. Quem à direita é contra vê no TPI uma agressão anti-nacionalista e na prisão perpétua uma contradição com os nossos brandos costumes. Quem à direita é a favor orienta-se pela ideia de que a modernização democrática e conservadora da sociedade portuguesa tem de ocorrer num marco internacional económico, político e cultural, sendo o TPI uma fatalidade. Quem à esquerda é contra vê no TPI um atentado à soberania nacional e na prisão perpétua um possível veículo para que a tentação autoritária que habita os nossos brandos costumes venha a contrabandear no futuro outras excepções aos direitos, liberdades e garantias. Quem à esquerda é a favor coloca num prato da balança o indesejado regresso da prisão perpétua e no outro a possibilidade de Portugal participar numa luta internacional de prevenção contra os regimes totalitários; decide-se a favor do último tanto mais que, dada a tentação autoritária caseira, a democracia portuguesa está mais segura se estiver na frente da defesa da democracia a nível internacional.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos