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22-03-2001        Visão
Por trágicas razões, os portugueses viram nas últimas semanas a sua identidade nacional acrescentada de mais uma sub-identidade, a de paivenses. Esta nova identidade veio juntar-se a algumas outras que em tempos recentes têm vindo a enriquecer a soma do que somos. Distingo três: souselenses, canenses e barranquenhos. O que há de comum entre as populações que reivindicam estas identidades é o partilharem entre si a distância a que são votadas pelo Estado, uma distância que se traduz em esquecimento ou em incompreensão, mas que envolve sempre arrogância política e cultural. Por isso, apesar de muito distintas entre si, estas identidades têm muito em comum e as reivindicações em que se traduzem só poderão ser satisfeitas se o Estado reinventar globalmente o seu modo de se relacionar com o país.


Estas identidades são distintas, porque são distintas as formas de arrogância política e cultural a que são sujeitas. Distingo quatro formas de arrogância. A primeira é a arrogância do esquecimento, ilustrada pela situação dos paivenses. É a arrogância do Estado novo-rico que se esquece ou tem vergonha do parente pobre que vive na província, algures para além do Parque das Nações. O parente pobre escreve-lhe cartas anos a fio a contar de si e das suas dificuldades. Vão todas para o lixo até que um dia acontece uma desgraça maior. Minado pela má consciência momentânea, o novo-rico desfaz-se em atenções pelo tempo necessário, sempre breve, para a aplacar. A segunda forma de arrogância é a arrogância da imposição de riscos ilustrada pela situação dos Souselenses. É a arrogância das decisões autoritárias sobre riscos e probabilidades de acidente, avalizadas por uma ciência encomendada e duvidosamente científica. Tais decisões são impostas a populações pobres, politicamente indefesas sobre o pretexto de que têm de ser solidárias para com um modelo de desenvolvimento de que só partilham os custos.

A terceira forma de arrogância é a arrogância da recusa de autonomia, ilustrada pela situação do povo de Canas de Senhorim. É a arrogância com que, sob o falso pretexto de racionalidade administrativa, os jogos político-partidários amordaçam a legítima aspiração de uma localidade a ser sede de concelho (que, aliás, já foi). Vinte e cinco anos de luta contra um muro de incompreensão centralista alimentados por uma forte pulsão identitária e com o único objectivo de realizar na prática o que o Estado apenas realiza nos discursos de inaugurações: evitar a desertificação do interior. Finalmente, a quarta forma de arrogância é a arrogância politicamente correcta ilustrada pela situação do povo de Barrancos. Trata-se da arrogância de um Estado urbano e europeu novo que arvora a sua moral pequeno-burguesa em norma universal e à luz dela criminaliza as práticas "desviantes" de populações rurais postas na contingência de terem de transformar a vontade ancestral da festa num direito à diferença.

Porque todas estas arrogâncias são variantes da mesma arrogância política e cultural, há muito de comum entre paivenses, souselenses, canenses e barranquenhos, e entre eles e cada um de nós. É por isso que o direito dos paivenses à dignidade do desenvolvimento não será eficazmente garantido sem o direito dos souselenses a defender a sua saúde contra a co-incineração, o direito dos canenses a terem o seu concelho, ou o direito dos barranquenhos à festa.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos