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12-07-2001        Visão
Vejo-me frequentemente a escrever na contracorrente. Na contracorrente a escrita não pode confiar nas ondas para avançar. Tem de procurar os seus pontos de apoio nos recessos e os recessos são os silêncios absorvidos pelo alto ruído das ondas. Na última semana, a onda da crise política foi alterosa, uma onda feita de várias ondas: a onda dos comentadores políticos sobre o desgoverno da remodelação e a remodelação do desgoverno, a onda da auto-flagelação do PS pela voz de destacados militantes e dirigentes, a onda da arrogância da direita eufórica com as facilidades que não julgava ter. Não é fácil ouvir os silêncios em tamanha vozearia mas com algum esforço é possível ouvir dois silêncios principais.

O primeiro silêncio é o dos números. Tomando a Alemanha Ocidental como termo de comparação (100%), a produtividade do trabalho em Portugal era, em 1998, 34,5% e os custos salariais, 37,4%. Estes números eram para a Espanha 62% e 66,9%, respectivamente; para a Inglaterra, 71,7% e 68%; e para a Irlanda, 69,5% e 71,8%. Estas diferenças de produtividade e de custos salariais mantiveram-se quase inalterados nas duas últimas décadas, com a excepção da Inglaterra, onde os custos salariais foram reduzidos de 40% desde 1980. Em seu silêncio, estes dados dizem três coisas: a aproximação ao rendimento médio europeu deu-se basicamente por acção dos fundos estruturais e de coesão; estes fundos não foram usados para obter ganhos de produtividade; os erros principais foram cometidos durante o primeiro e mais longo período de governo no interior da UE, ou seja, durante o cavaquismo. A batalha da produtividade foi aí perdida porque se mutilou o potencial científico-técnico das universidades públicas, submetendo-as à pilhagem do comércio selvagem do ensino superior e da falsa formação profissional, porque o lobby do betão actuou sem concorrência e porque o sistema judicial foi ineficaz ante a corrupção.

O segundo silêncio é o do êxito de algumas políticas sectoriais dos governos socialistas dos últimos seis anos que, a julgar pelos anúncios vindos a público, virão a ser postas em causa pela direita se esta ganhar as próximas eleições. Entre esses êxitos destaco a reforma da segurança social e o rendimento mínimo garantido (apesar dos seus limites); a política científica e tecnológica; a política cultural do Ministro Manuel Maria Carrilho; desde 1999, a política da justiça; e, já este ano, a política da reforma fiscal. Para além destas, há a referir uma política de concertação na área laboral que tornou possível dois acordos (sobre emprego e formação profissional e sobre condições de trabalho, higiene e segurança) assinados por todos os parceiros sociais, o que não sucedia há onze anos. E, por não ser menor, deve ainda ser mencionada a tentativa de pôr fim à situação vergonhosa dos acidentes de trabalho, até agora um monopólio das seguradoras privadas, criando um sistema público paralelo no âmbito da Segurança Social. Estas políticas possibilitaram alguns consensos, mas também criaram inimigos poderosos que não hesitarão em usar as muitas armas que têm para liquidar este activo político.

Nos recessos das ondas da crise é possível ouvir o que verdadeiramente está em causa. Paradoxalmente, os governantes e o partido que os apoia parecem ser os mais surdos.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos