Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
26-07-2001        Folha de São Paulo
São quatro as principais lições do que se passou em Génova durante a reunião dos G-8. Tê-las-emos presentes no Segundo Fórum Social Mundial de Porto Alegre em Fevereiro de 2002.

Primeira lição:
esta globalização é insustentável.
O relatório mais importante da reunião dos G-8 foi elaborado por quem lá não esteve, pelos Ministros das Finanças dos sete países mais ricos. Esse relatório, intitulado "O alívio da dívida e para além dele", é revelador da contradição insanável entre a economia neoliberal e o bem-estar da maioria da população mundial. Reconhecendo que esse bem-estar depende hoje do alívio da dívida externa dos países mais pobres, o relatório proclama o êxito da iniciativa nesse sentido em relação a 23 países (entre os quais, três de língua oficial portuguesa: a Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe) e assegura que, a médio prazo, a sustentabilidade da dívida assenta na maior integração desses países no comércio mundial. No entanto, é o próprio relatório a afirmar que a participação dos países menos desenvolvidos no comércio mundial diminuiu na última década e por isso se empobreceram. Ora, não se propondo no documento nada radicalmente novo que altere este estado de coisas, a hipocrisia não poderia ser maior: impõe-se como solução a metade da população mundial o que se reconhece ter sido até agora o seu problema. E a hipocrisia atinge o paroxismo na abordagem das pandemias (HIV/AIDS, malária e tuberculose)que afligem os países menos desenvolvidos. Depois de reconhecer que estas doenças matarão 15 milhões de pessoas por ano, insiste-se que a produção de medicamentos mais baratos deve ser feita sem violação da protecção dos direitos de propriedade intelectual das multinacionais farmacêuticas.

A contradição deste modelo é insanável porque a liberalização das trocas sem condições é como um combate de boxe entre um peso-pesado e um peso-pluma. Se o Mali controlasse o preço internacional do algodão a sua dívida não seria, como é de novo, "insustentável". Se Moçambique pudesse ter resistido à imposição do Banco Mundial no sentido de eliminar as tarifas sobre a exportação do caju, não teria destruído a sua indústria de processamento de caju. Haveria menos fome no mundo se os países menos desenvolvidos pudessem proteger as suas actividades económicas da voracidade das 200 maiores empresas multinacionais que detêm 28% do comércio global mas apenas 1% do emprego global. Se os países, endividados em dólares, pudessem resistir à desvalorização das suas moedas não veriam as suas dívidas aumentar por mero efeito da desvalorização. A balança comercial dos países menos desenvolvidos não se deterioraria tão drasticamente se os seus produtos não estivessem sujeitos ao proteccionismo dos países ricos (a mãe de todas as hipocrisias do neoliberalismo) e não tivessem que competir com produtos altamente subsidiados.

Segunda lição:
está em curso uma globalização alternativa.
À medida que o neoliberalismo deixa cair a máscara, vai emergindo uma opinião pública mundial assente no seguinte: os governos nacionais estão hoje reféns dos grandes interesses económicos e a democracia disfarça essa dependência ao ser mais ou menos efectiva nas áreas que não interferem com tais interesses; sem formas de controle político democrático efectivo, a nível local, nacional e global, a busca incessante do lucro cria disparidades eticamente repugnantes entre ricos e pobres e causa danos irreversíveis ao meio ambiente; num modelo económico assente no respeito sagrado pela propriedade privada, a magnitude da falta de controle público sobre a riqueza mundial reside no facto de dos 100 maiores Produtos Internos Brutos mundiais, 50 não pertencerem a países mas a empresas multinacionais; este modelo de (in)civilização não é inelutável, tem pés de barro e a sua força reside sobretudo na apatia e no conformismo que produz em nós. Esta opinião pública mundial começa a dar vida a centenas de milhares de organizações não governamentais, e de redes de advocacia transnacional que vão organizando a resistência à globalização hegemónica e formulando alternativas que, na cacofonia da sua diversidade, têm em comum a ideia de que a dignidade humana é indivisível e que só pode florescer em equilíbrio com a natureza e numa organização social que não reduza os valores a preços de mercado.

Terceira lição:
o diálogo entre as duas globalizações é inadiável.
O capitalismo global - representado pelos governos dos países ricos e pelas agências financeiras e comerciais multilaterais que eles dominam - que pensava ter caminho livre depois da queda do Muro de Berlim é hoje obrigado a erigir muros de aço e de cimento para que os seus representantes possam continuar a tomar decisões que ele reclama. A violência deste sistema alimenta-se da violência de alguns grupos minoritários que lutam contra ele mas alimenta-se sobretudo da falta do reconhecimento da globalização alternativa, protagonizada pelos que se sentem solidários com os interesses dos muitos milhões excluídos das reuniões e vítimas das decisões. O diálogo é, pois, inadiável para que se passe de uma retórica cínica de concessões vazias à elaboração de um novo contrato social global caucionado por uma nova arquitectura política democrática também ela global. Será um diálogo difícil e certamente confrontacional, mas incontornável.

Quarta lição:
de Génova 2001 a Porto Alegre 2002 há um longo caminho a percorrer.
À medida que cresce a globalização contra-hegemónica, cresce a responsabilidade dos seus protagonistas. Essa responsabilidade vai ser medida a três níveis: organização, actuação e objectivos. A qualquer destes níveis as tarefas são exigentes. A energia do movimento pela globalização alternativa reside na sua diversidade interna, nas múltiplas formas de organização e de actuação e nos múltiplos objectivos que acolhe. Esta diversidade vai ser mantida quanto mais não seja porque não há no movimento nenhum grupo ou organização capaz de a cooptar ou eliminar a seu favor. No entanto, ao nível da organização vai ser necessário aprofundar os processos de coordenação e de assegurar o carácter global e democrático destes. Ao nível das formas de actuação, o movimento tem de proceder a uma distinção fundamental entre violência que deve ser rechaçada, e ilegalidade que deve ser acolhida sempre que os meios legais não estejam disponíveis ou não bastem. O capitalismo global, ao mesmo tempo que provoca a desregulamentação da economia dos países, impõe uma nova legalidade que, por exemplo, torna ilegal proteger os direitos dos trabalhadores ou o meio ambiente. Todos os grandes movimentos democráticos começaram com acções ilegais (manifestações e greves não autorizadas, acção directa, desobediência civil). Há que elaborar uma teoria democrática da ilegalidade não violenta. Finalmente, ao nível dos objectivos há que distinguir entre os primeiros passos e os horizontes. Neste momento, os primeiros passos estão razoavelmente bem definidos e são eles que integrarão os primeiros e mais difíceis momentos do diálogo entre globalizações: perdão efectivo da dívida; impostos Tobin; democratização dos processos de decisão das agências financeiras multilaterais; sujeição a referendo das mais importantes iniciativas de liberalização do comércio; inclusão em novas negociações comerciais (sobretudo no âmbito da Organização Mundial do Comércio) dos direitos humanos, em especial dos direitos laborais e ambientais. Mas estes primeiros passos devem ser integrados num horizonte civilizacional mais amplo, no horizonte de um mundo melhor. Só assim se garantirá que o sistema actual, já de si bastante injusto, não venha a ser, pela perversão dos objectivos contra-hegemónicos, substituído por outro ainda pior. São tarefas urgentes na agenda do povo de Porto Alegre.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos