Centro de Estudos Sociais
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06-09-2001        Visão
Pese embora a psicanálise, confessar pecados, pedir a absolvição e cumprir a penitência continua a ser, na cultura ocidental, o modo paradigmático de os indivíduos e grupos sociais se reconciliarem consigo mesmos e com os outros. Este paradigma, não sendo originário da Igreja Católica, adquiriu com ela uma impregnação cultural hegemónica que transcende hoje o religioso e se estende às zonas de contacto da cultura ocidental com outras culturas. A Conferência das Nações Unidas sobre o Racismo, que se está realizar em Durban (África do Sul), é a manifestação mais recente deste paradigma cultural e está presente, de maneiras diferentes, tanto na questão do pecado da escravatura como na da equiparação do sionismo ao racismo. Na última década, as muitas Comissões de Verdade e de Reconciliação que se constituíram nos períodos pós-apartheid (África do Sul) e pós-ditadura militares (América Latina) obedecem ao mesmo paradigma.

Este paradigma assenta em três pressupostos. Em primeiro lugar, os grupos sociais em presença são constituídos, um, em agressor, e o outro, em vítima e é a vítima que preside à confissão e concede a absolvição mediante uma penitência. O segundo pressuposto é, pois, o da vitória da vítima. Trata-se, contudo, de uma vitória muito parcial. Tal como na confissão católica a penitência é uma licença para pecar livremente, também aqui a vítima pode impor uma penitência mas não tem poder para impedir a reincidência no pecado. Este paradigma torna apenas possível uma justiça "restaurativa" que permite a reconciliação com o passado mas não impede que o futuro seja diferente dele. Assim, as Comissões de Verdade possibilitaram o aperto de mão, entre racistas e vítimas do racismo, entre torturadores e presos políticos ou familiares de desaparecidos, mas não puderam eliminar as condições económicas e sociais responsáveis pelo sistema de injustiça estrutural que continua a produzir o apartheid social na África do Sul (onde 3% da população detém a quase totalidade da terra fértil) e na América Latina submete a maioria da população a formas cruéis de exclusão social que, quando convivem com democracias de baixa intensidade, não significam mais que a transformação do fascismo político em fascismo social.

O terceiro pressuposto deste paradigma social cultural é que a dicotomia entre agressor e vítima tem de ser inequívoca e permanente. A transformação da vítima em agressor conduz à paralisia do juízo. O holocausto transformou merecidamente o povo judaico na vítima mais vitoriosa do séc. XX. O Estado de Israel foi a penitência com que a má consciência do mundo procurou perdoar-se de um pecado hediondo. Só que tal penitência foi realizada à custa da criação de uma outra vítima, o povo palestiniano. Por falta do cumprimento pleno das decisões da ONU, os israelitas transformaram-se num povo agressor: à expulsão e morte dos palestinianos em 1948 seguiu-se uma ocupação brutal a partir de 1967. Hoje o Estado de Israel submete os palestinianos que vivem no seu interior (eufemisticamente chamados "árabes israelitas") a formas degradantes de apartheid, e os que vivem fora, à ocupação e à expulsão. Devido em parte à força do lobby sionista, a imagem do judeu-vítima impede que se veja o judeu-agressor. É por isso que o holocausto continua a perdoar tudo e o sionismo não é visto como racismo.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos