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20-09-2001        Visão
No momento em que escrevo estão ainda no ar duas incógnitas sem cujo esclarecimento não será possível determinar até que ponto o mundo mudou com o hediondo ataque terrorista de 11 de Setembro, vinte e oito anos depois da queda violenta de Salvador Allende, no Chile, com a intervenção activa da CIA. Essas duas incógnitas são: Quem é o inimigo? Como vão retaliar os EUA? Temo que a resposta à segunda pergunta possa ocorrer antes da resposta à primeira. A pressão para transformar os sentimentos de horror e de luto em sentimentos de vingança é de tal maneira forte que a decisão da retaliação pode vir a contentar-se com provas duvidosas e incompletas.

Nestas condições não é possível pensar no futuro senão em termos dos factores que no passado recente têm vindo a contribuir para a emergência ou agravamento de novos antagonismos que, ao contrário do antagonismo que caracterizou a Guerra Fria, assentam em brutais desequilíbrios de poder e na falta ou impotência de instituições para os regular. Distingo três desses antagonismos: os conflitos no Médio Oriente e na ex-Jugoslávia; a guerra económica dos países ricos contra os países pobres sob o nome de globalização neoliberal; a transformação recente dos EUA numa espécie de "Estado pária", ao arrogar-se o direito de denunciar tratados internacionais para consolidar a sua supremacia e defender-se do resto do mundo, concebido como inimigo ou concorrente comercial, o que na tradição da diplomacia americana não é uma distinção significativa.

Em todos estes antagonismos, a parte mais fraca – sejam eles os palestinianos, os libaneses, os iraquianos, os sérvios, os países pobres estrangulados pela dívida externa ou, no caso do terceiro antagonismo, até a UE e o Japão que assistem impotentes ao isolacionismo dos EUA – é sujeita a três processos de desumanização que tornam impossível a negociação, o compromisso e a institucionalização dos conflitos.

O primeiro processo é a máquina tecnológica, seja ela militar ou económica, que actua com tanta superioridade, violência e precisão que o inimigo se torna invisível ou descartável. O segundo processo é a máquina de propaganda que, por um lado, magnifica o inimigo com o objectivo único de magnificar a sua derrota e, por outro, o demoniza a ponto de o tornar incapaz de qualquer motivação nobre. É este processo que faz com que os telespectadores norte-americanos, ao verem as imagens dos jovens palestinianos a atirar pedras aos tanques israelitas, vejam nelas actos de agressão e não actos de heroísmo.

O terceiro processo são os critérios duplos a que os vencedores e os vencidos estão sujeitos. Tanto Israel como o Iraque são violadores de decisões do Conselho de Segurança da ONU, mas o primeiro continua a receber a maior fatia da ajuda internacional dos EUA, enquanto o segundo é bombardeado há dez anos. Os vencedores perdem vidas, tanto mais preciosas quanto o novo lema militar é "morte zero", enquanto os vencidos são vítimas de "danos colaterais", os quais, no caso do Iraque, podem ter atingido meio milhão de crianças. Do mesmo modo, os países ricos impõem aos países pobres o comércio livre, mas guardam para si o privilégio de proteger as suas economias.

O problema destes novos antagonismos é que os que semeiam ventos não são os mesmos que colhem tempestades. Estes últimos são quase sempre vítimas inocentes.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos