Os desdobramentos dos ataques de 11 de Setembro vão-nos continuar a surpreender por muito tempo. Eis uma das surpresas: muitas das políticas internacionais dos países ricos, apesar de justificadas com referência a interesses gerais - "o comércio livre traz prosperidade a todo o mundo" - resultam apenas do facto de esses países nunca se terem imaginado na posição dos países pobres. A ilustração mais clara disto é o que se passa com a ameaça da propagação do bacilo do Antraz nos EUA e no Canadá e as reacções destes países face à empresa (a Bayer) que detém a patente sobre o antibiótico considerado mais eficaz para combater a doença (Cipro).
Antes do Uruguai Round, concluído em 1994, cerca de 50 países, Portugal incluído, não concediam protecção a patentes de produtos farmacêuticos, e foi com base nisso que se desenvolveram as indústrias nacionais nesse sector. Desde então, com o acordo sobre os aspectos comerciais dos direitos de propriedade intelectual (TRIPS), já no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), as grandes empresas farmacêuticas, que detêm as patentes da esmagadora maioria dos medicamentos, passaram a poder impor internacionalmente as suas patentes por um período mínimo de 20 anos, o que significa que durante esse período têm o monopólio do mercado e fixam os preços livremente sem a concorrência dos produtores dos genéricos. Só em casos de extrema emergência nacional podem os Estados preterir os direitos de patente. Desde 1994, os países pobres e em desenvolvimento têm vindo a insurgir-se contra este regime, que os impede de ter acesso a medicamentos baratos para tratar as epidemias da sida, tuberculose, malária e diarreias. Com a catástrofe da sida, a situação tornou-se absurdamente desumana. Há 36 milhões de pessoas infectadas com HIV, 24 dos quais em África, onde diariamente morrem 5500 pessoas com sida. A África do Sul, onde até 2010 morrerão 7 milhões de pessoas com sida, teve de lutar em tribunal para poder importar medicamentos baratos e mesmo assim não suficientemente baratos para os fornecer a toda a população. Para se ter uma ideia da diferença de preços, um dos anti-retrovirais, o 3TC (Lamivudine), produzido pela Glaxo, custa 3.271 dólares por ano e por doente nos EUA, enquanto o genérico correspondente é produzido por uma firma indiana ao preço de 190 dólares. O Quénia, onde a esperança de vida em 1990 era de 59 anos e é hoje de 30, não podendo produzir localmente anti-retrovirais, terá de os importar mas só o poderá fazer se o seu preço for acessível. No entanto, como acaba de alertar, a OMC está-lhe a proibir a importação dos genéricos do Brasil e da Índia. Só os poderá obter se lhe forem oferecidos.
O pânico do Antraz está instalado nos EUA e Canadá. Nos EUA morreram 3 pessoas e umas dezenas estão contaminadas; no Canadá nenhuma. No entanto, tanto bastou para que estes países ameaçassem produzir o genérico do Cipro e para que a Bayer, que vende cada comprimido a 1300$00, aceitasse vendê-los a estes Estados a menos de 200$00. O contraste entre os países ricos e os países pobres não podia ser mais chocante. O facto de os primeiros se verem agora a braços com um perigo que os últimos há muito conhecem como realidade poderia ser um estímulo a que na próxima reunião da OMC no Qatar tomassem a única decisão justa: a de as patentes se subordinarem ao interesse da saúde pública.