Se é verdade que “rebeldia” e “precariedade” rimam com a condição juvenil talvez seja oportuno propor uma reflexão onde se questiona qual desses termos se mostra, hoje em dia, mais pertinente para definir a atual juventude. Por outras palavras, será pela irreverência e rebeldia ou antes pela capacidade adaptativa que o chamado “precariado” pode deixar a sua marca na sociedade? É essa a questão que procuro discutir neste e num próximo artigo.
No plano substantivo, a juventude emergiu como sujeito quando começou a participar na definição do seu próprio futuro. Até meados do século passado, pode dizer-se que as gerações se sucediam sob a tutela dos mais velhos e submetidas à moral dominante, em geral sob a pressão normativa (ou repressiva) das instituições e do Estado, como foi o caso do período salazarista. Na geração dos meus pais – que foram adolescentes e “jovens” nos anos 1920-1930 –, os filhos da classe trabalhadora tornavam-se trabalhadores mal saíam da escola primária, e até antes disso. Em idade precoce assumiam as tarefas domésticas (raparigas) ou eram mandados atrás do gado e a tratar da terra (rapazes), que para isso não era preciso saber ler nem escrever. Só muito mais tarde a «juventude» portuguesa ganhou expressão enquanto tal, justamente quando o sistema de ensino começou a expandir-se e a guerra colonial surgiu como um espectro ameaçador. Até então, pode dizer-se que não existia juventude, mas antes adultos em estado embrionário (mesmo na infância e adolescência).
Por cá ou lá fora, a juventude nasceu, pois, em tempos convulsivos, tempos de viragem, e só foi reconhecida como força social quando protagonizou ruturas marcantes na história moderna. Seja como for, os jovens do século XXI merecem a atenção das ciências sociais, tal como as gerações dos anos sessenta e setenta do século passado inspiraram estudos incontornáveis da sociedade contemporânea. Os jovens são o barómetro das tendências futuras. É verdade que “juventude não é senão uma palavra” (como afirmou P. Bourdieu), mas na sua diversidade construiu «Culturas juvenis» e tornou-se um veículo de novas formas de assalariamento, tais como os «Ganchos, Tachos e Biscates» (títulos conhecidos de J. Machado Pais).
Dizer que a «juventude» é uma construção social significa assumir que as linhas-limite da condição juvenil se tornaram cada vez mais porosas e indefinidas. Por outras palavras, o critério “idade” não é suficiente para definir a juventude. E mesmo que o fosse, as próprias balizas etárias têm sido progressivamente ampliadas e mostram-se hoje em dia cada vez mais instáveis. Em geral, atribuímos ao «jovem» uma posição ambivalente, meio-dependente meio-autónoma, um ser humano que já não é criança e que acaba de deixar para trás a curta fase da adolescência; alguém que ainda não é independente, que está a consolidar qualificações e em busca de uma posição no campo profissional; no seu estatuto “transitório”, o jovem não constituiu ainda uma família nem possui uma independência financeira, mas apesar disso pode usufruir de meios para gerir a sua relativa autonomia.
Para as estatísticas oficiais, o critério etário continua a ser o mais importante, mas isso só tem sentido se atendermos a que o nível mínimo de escolaridade obrigatória está hoje no 12º ano e que só a partir dos 15 anos de idade é permitido ter um trabalho assalariado. Isto sem esquecer o caso dos “nem-nem” (os que não trabalham nem estudam), que em Portugal rodam os 300 mil e cujo número se agravou na última década. Atualmente, é-se jovem entre os 15 e os 34 anos e o que é ainda mais preocupante é que mesmo aos 40, muitos continuam com empregos precários (ou desempregados de longa duração) e nessa altura torna-se demasiado tarde para conquistarem um emprego decente e iniciar uma carreira profissional. Esse, aliás, é talvez o fator de maior angústia da atual geração que tem sido chamada de «Millennials» ou «Geração Y».
Desde os tempos dos baby boomers, nascidos no pós-II Guerra, lado a lado com as novas correntes culturais e estilos musicais, a estética de irreverência, o sentido de evasão (os “Rebeldes sem causa” que James Dean representou), a rejeição do velho modelo de família, etc., tiveram lugar múltiplas ruturas geracionais que se acentuaram nos sixties, enfrentando velhos tabus. Com a ostentação do corpo no espaço público, a liberdade sexual e a exibição da sensualidade (feminina em particular), floresceram novos padrões de gosto, expressões de “contracultura” e estilos de vida alternativos que atingiram amplos segmentos juvenis da classe média e daí irradiaram para os setores populares. No terreno do radicalismo político, multiplicaram-se os grupos armados e as brigadas revolucionárias de diversos tipos, e em vários continentes, da Europa central e do Leste à guerrilha da América Latina. Numa linha diferente, podemos ainda exaltar a coragem dos protestos massivos contra os tanques soviéticos em Budapeste e em Praga, as ocupações nas universidades americanas e francesas, culminando com o Maio de 68 em Paris (sem esquecer as lutas estudantis de 62 e 69 em Portugal). Poucos anos depois, o 25 de Abril português ainda atraiu, como sabemos, milhares de revolucionários europeus de 68. Antes e depois disso, as lutas contra a ameaça nuclear e a corrida ao armamento das superpotências; os movimentos pacifistas, ecologistas e feministas; a violência dos grupos autonomistas e a guerrilha urbana do IRA e da ETA, etc. tornaram-se ícones incontornáveis na linguagem de sucessivas gerações.
Talvez o sentido de aventura, a atração pelo risco e a busca de adrenalina, ajudem a explicar a facilidade com que os comportamentos juvenis podem cair no extremismo. Na esfera da política identitária, muitos jovens entregam-se a militâncias radicais, de natureza diversa, movidos por ideologias, endoutrinados por líderes fanáticos ou atraídos por rituais poderosos e ideias esotéricas. Os mais radicalizados tanto podem abraçar a extrema-esquerda como a extrema-direita. Os Black Bloc, de um lado, e o Daesh, de outro, são exemplos desse extremar de opções: os seus ativistas são predominantemente jovens ou “adultos-jovens” e, apesar de serem ínfimas minorias, uns e outros já fizeram sentir a sua presença com imenso aparato.
Já no terreno da política partidária, diga-se que a grande maioria dos jovens se coloca de fora, seja por falta de consciência social e formação cívica, seja por um excesso de lucidez quanto às características da atual “classe política”. Entre os que se posicionam nesse campo, muitos iniciam-se nos núcleos estudantis, prosseguem a carreira ao encontro de uma “Jota” e, com sorte, atingem o Parlamento ou alguma assessoria num ministério; depois podem alcançar, ou não, o sucesso individual. Em geral, adaptam-se ao mainstream e incorporam plenamente a atitude seguidista que impera nos partidos políticos e nas instituições. Quer pela formatação e adesão ao status quo, quer pela indiferença e individualismo generalizados vive-se neste domínio um clima de pacificação. A grande massa dos jovens portugueses evidencia uma ampla capacidade adaptativa e isso, lado a lado com o gosto pela vida, o conhecimento técnico avançado (sobretudo entre os mais qualificados) ou a aposta num projeto empreendedor, leva-os a aceitar trabalhar com dedicação, mesmo em condições de grande precariedade e de desrespeito pelos seus direitos. Mas para muitos milhares a emigração é a alternativa.