Na Cimeira de Roma de 25 de Março de 2017, a ideia da «Europa a múltiplas velocidades» ressurgiu em força, transmutada em «Europa de geometria variável». Numa altura em que parece quase contra-intuitivo para um país como Portugal deixar de pretender estar no «pelotão da frente», e em que o discurso político e mediático reforça esta «falsa ideia clara», importa revisitar a história da inserção do país do euro, um percurso marcado pela divergência, e reflectir sobre que escolhas podem ser mais benéficas.
Em Outubro de 2016, escrevi neste jornal acerca da velha proposta de «Europa a múltiplas velocidades» e do seu regresso no contexto dos debates europeus depois do Brexit [1]. Parecia-me que a ideia viria à tona no contexto da preparação da Cimeira de Roma de 25 de Março de 2017 e queria contribuir para evitar que a resposta portuguesa se limitasse ao típico, quase reflexo e, portanto, irreflectido «se há um pelotão da frente temos de lá estar».
A Europa a múltiplas velocidades lá surgiu e a reacção automática não tardou. Volto agora na esperança de que ainda haja tempo para um debate, antes que novas escolhas, difíceis de reverter, sejam assumidas, condicionando o futuro colectivo, mais uma vez sem que o país seja consultado.
As múltiplas velocidades e as falsas ideias claras
As múltiplas velocidades regressaram desta vez sob a forma mais simpática de «geometria variável». Primeiro, a 3 de Fevereiro, numa nota que os países do Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo) fizeram circular na cimeira informal de Malta onde advogavam «diversos caminhos de integração e de cooperação reforçada» [2]. Depois, a 1 de Março, no cenário «Fazer “mais” quem quiser “mais”» do «Livro Branco sobre o Futuro da Europa da Comissão Europeia» [3]. Logo de seguida, a 6 de Março, em Versalhes, nas conclusões de um encontro dos presidentes e chefes de governo francês, alemão, espanhol e italiano, apresentadas pelo presidente francês François Hollande: «poderíamos ir mais depressa e com mais força com alguns países sem excluir outros e sem depender de outros que se podem opor» [4]. Depois, a 10 de Março, em Bruxelas, nas notas conclusivas de nova discussão informal dos chefes de Estado e de governo dos agora 27 de forma dubitativa: «Alguns esperam mudanças sistémicas que aliviem os laços intra-UE [intra-União Europeia] e reforcem o papel das nações em relação à comunidade. Outros, pelo contrário, procuram novas e mais profundas dimensões de integração mesmo que se apliquem apenas a alguns Estados Membros» [5]. E por fim, como que a pôr termo a uma discussão que mal tinha começado, na Declaração de Roma: «Agiremos em conjunto, a diversos ritmos e intensidade quando necessário… mantendo a porta aberta aos que se quiserem juntar mais tarde» [6].
Entretanto, por parte do governo português, surgiram reacções diversas e pouco claras. A 7 de Março, o primeiro-ministro António Costa dava nota de alguma incomodidade com as «várias velocidades ou geometrias variáveis». Admitia «que pode ser preferível avançar só alguns do que ficarmos todos paralisados», mas preferia que «os 27 pudessem avançar em conjunto» (Público, 7 de Março de 2017). Já no dia 8 de Março, em entrevista ao Expresso, acrescentava: «a evolução com geometria variável pode ser um mal menor, mas é perigosa do ponto de vista de dissolução do futuro da União». E mais à frente, na mesma entrevista: «Já hoje os que querem fazer mais podem fazê-lo através das cooperações reforçadas (euro, Schengen), mas o que se prevê de novo é que possa haver uns grupos para o terrorismo, outros para outra coisa, agrupamentos variáveis na geometria e sem coerência. E isso é que é perigoso». Para ele só uma coisa era clara: «estaremos sempre no núcleo duro, temos de estar». Ou, como tinha dito no dia anterior: «Há uma coisa que é certa: quando avançarmos, estaremos presentes. Portugal está em Schengen, está no euro e estará sempre na linha da frente do projecto europeu».
Já o ministro das Finanças, Mário Centeno, também a 7 de Março, ao lado de um ministro francês que generosamente oferecia a Portugal um lugar na «linha da frente», não se manifestava tão avesso à geometria variável. Dizia que o governo português não acreditava numa Europa a duas velocidades, preferindo «uma Europa construída a uma boa velocidade e onde alguns países podem trabalhar mais proximamente e em conjunto em alguns assuntos» (Expresso, 7 de Março).
Mais tarde, a 16 de Março, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, em entrevista ao Público adiantava condições para a aceitação do cenário «quem quiser avançar mais, avança»: «tem de haver coerência (não pode ser: eu reúno-me com este país para o efeito x e com aquele para o efeito y, senão há um risco de cacofonia e caos); e a segunda condição é que deve avançar quem quiser (não aceitamos um cenário de múltiplas velocidades por exclusão, ou seja, um conjunto de países excluir outros da sua vontade de avançar)».
Entre a crítica à geometria variável feita pelo primeiro-ministro, as condições do ministro dos Negócios Estrangeiros e «o trabalho conjunto [de alguns países] em alguns assuntos» do ministro das Finanças, parece, portanto, existir no governo uma saudável diversidade de opiniões. O consenso verifica-se num ponto – «temos de estar na linha da frente» – e esse nada tem de saudável. É um querer estar a todo o custo, sem como, nem porquê, ou com que consequências. Um estar porque sim.
No euro diverge-se
A fixação no «pelotão da frente» que nos levou ao euro, praticamente sem debate e muito menos consulta aos portugueses, decorre de um preconceito, de uma concepção da modernização e do desenvolvimento como processo de contágio que possivelmente tem origem no trauma salazarista do «orgulhosamente sós»… «na cauda da Europa». De acordo com essa concepção, só estando no pelotão da frente poderíamos convergir para a média da União Europeia.
No entanto, é precisamente no pelotão ou na linha da frente que temos estado desde a adesão ao euro. Será que a experiência acumulada desde 2000 confirma a teoria da convergência por contágio?
A convergência ou a divergência no seio da União Europeia pode ser avaliada em diversas dimensões. Se considerarmos a mais simples – o produto interno bruto (PIB) per capita – podemos avaliar a hipótese de convergência a partir da aproximação ou do afastamento do PIB per capita de cada país, e de todos os países, relativamente à média do conjunto num dado intervalo de tempo.
Num gráfico, como o que adiante se apresenta (ver Gráfico 1), representando no eixo horizontal a posição de cada um dos 28 países membros da União relativamente ao PIB per capita médio dos 28, em 2000, e no eixo vertical a deslocação do PIB per capita (real) de cada um dos países entre 2000 e 2015, a hipótese da convergência perfeita seria confirmada se todos os países ocupassem um de dois quadrantes: o quarto – onde se situam os que estavam abaixo da média e se aproximaram dela «por baixo» –, e o segundo – onde se situam os que estavam acima da média e se aproximaram dela «por cima». Presenças no primeiro quadrante (afastamento da média «por cima») e no terceiro quadrante (afastamento da média «por baixo) constituem instâncias contraditórias com a hipótese da convergência.
Observando o gráfico podemos constatar que, em geral, a hipótese da convergência não pode ser liminarmente rejeitada. A maioria dos países situa-se efectivamente no quarto e segundo quadrantes. No quarto quadrante (convergência «por baixo») encontramos todos os países da Europa de Leste que aderiram à União Europeia depois de 2004, sem adoptarem de imediato o euro (a Eslovénia viria a integrar a zona euro em 2007, a Eslováquia em 2009, a Estónia, em 2011, a Letónia, em 2014, e a Lituânia, em 2015), assim como Malta (adesão ao euro em 2008). No segundo quadrante (convergência «por cima») situam-se países fundadores do euro como a França, a Itália, Bélgica, a Holanda, a Finlândia, assim como a Dinamarca.
No entanto, existem casos que constituem anomalias significativas relativamente à hipótese da convergência. No primeiro quadrante (divergência «por cima») encontram-se três países fundadores do euro (Alemanha, Irlanda e Luxemburgo), assim como o Reino Unido e a Suécia. Neste grupo, entre os fundadores do euro, a Irlanda e o Luxemburgo constituem de facto anomalias, na medida em que o seu PIB é distorcido pela inclusão do valor acrescentado de empresas que de «interno» só têm o domicílio. Restam, como singularidades, o Reino Unido e a Suécia – que conservaram a sua moeda – e, significativamente, a Alemanha. Já no terceiro quadrante (divergência «por baixo») encontramos países da Europa do Sul que aderiram ao euro entre 1999 e 2001 (Portugal, Espanha, Grécia), assim como Chipre, que só aderiu em 2008.
O gráfico convida a uma conclusão simples: embora a hipótese da convergência no conjunto da União Europeia não possa ser liminarmente rejeitada, os países fundadores do euro (incluindo a Grécia), que se situavam abaixo da média em 2000, afastaram-se do valor central, isto é, divergiram.
Como se pode verificar no Gráfico 2, o caso português apresenta, relativamente a estes quatro países, uma especificidade importante: a divergência teve início em 1999 e não, como nos outros casos, em consequência da crise e dos resgates da Troika e da União Europeia.
Entre as premissas e as conclusões do primeiro-ministro
Voltemos às reacções do governo português sobre as propostas de «múltiplas velocidades » ou «geometria variável», nomeadamente à entrevista do primeiro-ministro publicada no Expresso de 8 de Março. Entre as premissas e as conclusões há um evidente salto no vazio.
António Costa mostra nessa entrevista ter consciência de questões muito importantes relacionadas com a integração económica e monetária. Sabe que «as uniões monetárias não corrigem as assimetrias, acentuam-nas, [e que portanto], … têm de ter capacidade orçamental própria que permita redistribuir os ganhos assimétricos». Sabe também que «estudos antes do lançamento do euro diziam que tinha de haver uma capacidade orçamental entre os 4-7% do PIB da União e que temos 1%» e quer «dotar a zona euro de uma capacidade orçamental digna desse nome». Sabe ainda que «não haverá estabilidade enquanto não houver convergência». E também sabe que, «durante muitos anos cometeu-se o erro de diabolizar os argumentos dos que sinalizaram as dificuldades, ou porque eram economistas americanos e queriam destruir o euro, ou eram cépticos como o João Ferreira do Amaral». Sabe, por fim que o «euro é uma peça central da UE, e não vale a pena fingir que não temos um elefante no meio da sala».
Estas são as premissas explícitas do primeiro-ministro. Arriscaria dizer que existem outras, não explicitas, mas igualmente importantes. Sabendo que o euro é uma peça central da arquitectura da União Europeia e que uma união monetária só pode deixar de causar divergências cumulativas se for dotada de uma capacidade orçamental digna desse nome que redistribua ganhos assimétricos, saberá também: 1) que o debate em curso procura tornar invisível o elefante no meio da sala; 2) que a união económica e monetária não ficará completa, contrariamente ao que temos ouvido dizer a outros responsáveis pela política europeia do governo, mesmo que seja concluída a União Bancária e criado um Fundo Monetário Europeu, deixando de lado as questões em que nunca pode haver consenso, nomeadamente a orçamental; 3) que a capacidade orçamental robusta de que carece a união económica e monetária não existirá, mesmo que o Partido Social-Democrata (SPD) venha a ganhar as eleições alemãs de Setembro de 2017.
À luz destas premissas, explícitas e implícitas, parece fazer todo o sentido a insistência do primeiro-ministro em clarificar, antes do mais, a natureza futura da união económica e monetária, isto é, em procurar definir o «núcleo duro», o «pelotão ou a linha da frente» ou seja lá o que for, antes de conversar sobre quem quer, ou quem o pode vir a integrar. O que não parece fazer qualquer sentido, e não decorre logicamente destas premissas, é abdicar dessa insistência e proclamar aos setes ventos que queremos estar, temos de estar, ou que estaremos doa a quem doer no núcleo duro, sem que saiba o que é esse núcleo.
Sabendo, como sabemos, que o núcleo, que caracteriza tanto as geometrias variáveis como as múltiplas velocidades concêntricas, será, em decorrência da estratégia nacional alemã, uma união económica e monetária privada de orçamento e de redistribuição dos ganhos assimétricos, mas dotada de uma governação à distância com orientação política ditada por preferências e interesses que nos são alheios, e munida de instrumentos disciplinares ainda mais robustos do que os actuais, deveríamos evitar saltos no desconhecido e encarar as decorrências lógicas das premissas acima enunciadas.
Primeiro, Portugal não quer estar num núcleo instável e tendencialmente divergente, que de coeso tem só a orientação política estruturalmente enviesada à direita e a disciplina. Segundo, Portugal defenderá que o aprofundamento da integração na união económica e monetária não é uma questão que diga respeito apenas aos países que declarem querer seguir a via do aprofundamento da integração num «núcleo duro» da união económica e monetária e da União Europeia, porque as decisões tomadas no núcleo têm consequências para o conjunto da União e cada um dos seus membros. Terceiro, Portugal defenderá que a contrapartida da geometria variável e da resultante existência de núcleo deverá ser a criação de um novo euro para os países que o vierem a constituir, deixando o euro actualmente existente para os países da união económica e monetária que, como Portugal, não o queiram integrar.
Mesmo admitindo que há vacas que voam, conforme foi já demonstrado, a convergência no quadro de uma união económica e monetária que nasceu com a incompletude inscrita no ADN, não é uma delas. A variabilidade da geometria deve implicar diversidade das instituições e das políticas (a começar pela moeda e a política monetária), num quadro comummente aceite. Talvez nesta base nos entendêssemos antes que a casa vá abaixo.
Notas
[1] «União Europeia: para onde vai o pelotão da frente?», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Outubro de 2016
[2] Disponível no blogue do primeiro-ministro belga, http://premier.fgov.be/en/benelux-vision-future-europe.
[3] Disponível em https://ec.europa.eu/commission/white-paper-future-europe-reflections-and-scenarios-eu27_pt.
[4] France Soir, 6 de Março de 2017, disponível em www.francesoir.fr/actualites-economie-finances/ue-hollande-reunit-un-mini-sommet-europeen-versailles.
[5] «Remarks by President Donald Tusk after the informal meeting of the 27 heads of state or government», disponível em www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2017/03/10-tusk-remarks-informal-meeting.
[6] «Declaration of the leaders of 27 member states and of the European Council, the European Parliament and the European Commission», disponível em www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2017/03/25-rome-declaration.