Na última década vários países estiveram à beira do colapso - México, Malásia, Tailândia, Indonésia, Rússia, etc. - mas em nenhum deles a situação atingiu as proporções dramáticas da Argentina, um colapso económico tão devastador quanto o colapso político. Quatro anos de recessão económica, uma moeda cada vez mais forte numa economia cada vez mais fraca, uma taxa de desemprego de 20%, uma dívida externa insustentável, conduziram a uma situação explosiva: desmantelamento dos serviços públicos, confisco parcial das poupanças da classe média, a revolta popular, o saque das lojas, 80.000 pessoas a bater panelas na Plaza de Mayo, 31 mortos, cinco presidentes em quinze dias. Duas perguntas ocorrerão a muitos de nós. Como foi possível que este país, até há pouco o mais desenvolvido da América Latina, com uma forte classe média, orgulhoso do seu capital simbólico - o país de Borges, Cortazar, Gardel e Maradona - pôde chegar a uma situação destas? E poderia algo semelhante vir a suceder entre nós? Esta última pergunta, dir-se-á, só poderá ocorrer a hiper-cépticos. O contraste entre a Argentina e Portugal não poderia ser maior. Lá, o caos; aqui, a euforia do euro sob o braço protector da União Europeia. É verdade. No entanto, apesar da diferença de grau, há, entre nós, alguns paralelismos preocupantes: derrapagem orçamental, crise fiscal, estagnação económica, economia fraca com moeda forte, desestruturação do tecido industrial, padrão de vida acima das nossas posses, ineficácia na luta contra a corrupção, etc. Por esta razão, a resposta à primeira pergunta pode trazer alguns avisos à navegação.
O modelo económico neoliberal - privatizações, abertura comercial e financeira, desregulação da economia e sobretudo do mercado de trabalho - foi adoptado na Argentina pela ditadura militar em 1976 e seguido, com acrescida ortodoxia, pelos governos democráticos da década de noventa, exemplificado com a adopção da paridade fixa ao dólar em 1991. O modo como este modelo foi aplicado mostra uma íntima conjunção entre uma oligarquia internacional, constituída por bancos e empresas multinacionais, legitimados pelo Banco Mundial e o FMI, para pensarem exclusivamente nos seus lucros quaisquer que sejam os custos sociais, e uma oligarquia nacional, habituada a apropriar-se da riqueza nacional e do Estado que viu nas privatizações e na liberalização dos fluxos financeiros a oportunidade para dar o golpe final no país. Resultados: uma ditadura sangrenta (cerca de 30.000 mortes e mais desaparecidos) pôde contar com o apoio das agências financeiras internacionais; empresas públicas, algumas bastante eficientes, foram forçadas a endividar-se artificialmente, provocando crises que levaram à privatização; muitas empresas públicas foram vendidas ao desbarato (como, por exemplo, as Aerolineas Argentinas compradas pela Ibéria); os serviços públicos (como, por exemplo, a saúde) foram estimulados ao descontrole financeiro para justificar a privatização no momento adequado; à medida que se concentrou a riqueza diminuiu a capacidade fiscal do Estado; o sistema político e o sistema judicial demitiram-se do combate à corrupção por onde desapareceu boa parte das receitas das privatizações. Nos quatro anos de recessão calcula-se que 2000 pessoas por dia tenham passado para baixo da linha de pobreza.
Enquanto tudo isto sucedia, a Argentina era considerada um caso exemplar da aplicação com êxito das políticas neoliberais e só e apenas porque os seus credores internacionais iam recebendo os seus juros e as empresas estrangeiras de serviços podiam impor os seus preços a consumidores cativos, cada vez mais endividados. A Argentina foi saqueada a partir de dentro e de fora. O povo, que para o FMI é apenas números e não gente, revoltou-se inconformado com a ideia de que não há alternativa. Apenas para que este não fosse o último tango. Quando vemos as barbas do vizinho a arder devemos pôr as nossas de molho?