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07-03-2002        Visão
As sociedades são teias complexas de vasos comunicantes onde tudo tem relação com tudo. As infinitas e tantas vezes caóticas interacções entre as diferentes dinâmicas, ritmos, impulsos e resistências nos múltiplos campos sociais vão definindo relações e articulações entre si que, ao estabilizarem-se, conferem uma lógica - uma medida - à sociedade no seu conjunto. É essa medida que nos permite falar de sociedades desenvolvidas, dinâmicas ou progressistas ou, pelo contrário, de sociedades subdesenvolvidas, estagnadas ou conservadoras. Em todos estes tipos de sociedade há movimentos e mudanças. O que varia é o ritmo e a direcção. Enquanto nalgumas todos os movimentos convergem com alguma coerência em redor de um padrão, noutras há movimentos e contra-movimentos que se neutralizam mutuamente, mudanças aceleradas ao lado de resistências fortes à mudança.

A nossa sociedade não se encaixa bem em nenhuma das tipologias convencionais. É por isso que a temos designado como sociedade de desenvolvimento intermédio. Mas, nas condições actuais, esta caracterização é menos a afirmação de uma medida do que o convite à busca de uma medida que nos escapa. A razão desta perplexidade reside no facto de a sociedade ter passado nos últimos vinte e sete anos por vários processos acelerados e turbulentos de transformação social que tiveram impactos intensos, selectivos e contraditórios em diferentes campos da vida social e que até agora não se sedimentaram numa nova medida, ou seja, numa nova imagem coerente da sociedade em que os portugueses se revejam de maneira consensual. Esses processos foram quase todos de ruptura, da revolução dos cravos à descolonização, da transição para o socialismo à transição para a democracia, da intervenção do Fundo Monetário Internacional à integração na União Europeia. Por terem sido processos de ruptura e por essas rupturas terem ido em sentidos políticos distintos, criaram expectativas que muitas vezes não se cumpriram e puseram em movimento transformações que foram frequentemente bloqueadas. Assim, as rupturas acabaram por conviver subrepticiamente com continuidades, algumas longas de séculos. Consoante o olhar e a perspectiva, a sociedade portuguesa pôde ser credivelmente vista como uma sociedade ávida de mudança ou, pelo contrário, como uma sociedade resistente à mudança, como uma sociedade em movimento vertiginoso ou, pelo contrário, como uma sociedade parada à beira de uma vertigem.

Estes jogos de imagens contraditórias, de rupturas e de continuidades têm ressonâncias insondáveis nos comportamentos dos indivíduos, dos grupos sociais e das instituições. Os comportamentos ora são comandados pelo conforto e a segurança da rotina, das raízes, da identidade, ora são comandados pelo desejo de afirmação e de aventura vislumbráveis numa fuga para a frente ou num salto no escuro. As mesmas pessoas ou as mesmas instituições podem oferecer-se a pulsões contraditórias em momentos diferentes ou em diferentes áreas da actividade social. Por isso, em todo o português que viveu intensamente estas últimas décadas há sempre um reformista na sombra do conservador e há sempre um conservador na sombra do reformista. Não há que esperar coerência entre padrões de comportamentos contraditórios, nem é de presumir que os mesmos tipos de comportamentos decorram das mesmas motivações ou de motivações igualmente profundas. O que pode aparecer como uma opção pode não ser mais que o produto do medo de não perder o comboio ou do desespero de se adaptar a uma nova situação considerada ameaçadora. Nestas condições, é tão fácil manipular as emoções dos portugueses como é difícil esperar deles lealdades profundas. Enquanto não houver medida tudo aquilo que mede desmede e a desmedida, por reiterada, pode passar por medida. Somos uma sociedade fractal, feita de infinitas indeterminações por onde circula uma insuspeitada rigidez.

É contra este pano de fundo que devem ser analisados os dados estatísticos sobre a sociedade portuguesa. Na sua nudez agregadora eles não dizem respeito a cada um de nós individualmente. Em 1997, nenhum homem teve a primeira relação sexual aos 17,4 anos com uma mulher de 20,6 anos, também ela a viver a sua primeira relação sexual. Por isso, não admira que perante os dados tenhamos por vezes a sensação de estarem a falar doutra sociedade que não a nossa e de outras pessoas que não nós. Mas, por outro lado, a surpresa que, por vezes, eles nos suscitam na primeira leitura é gradualmente substituída pela ideia de que exprimem afinal a turbulência por que passou a nossa sociedade nos últimos anos e o modo como nós fomos gerindo essa turbulência individualmente e nas nossas relações com os outros. E nessa medida são merecedores de reflexão. Apenas para dar um exemplo, em que medida essa turbulência individual e colectiva se exprime no brutal aumento do consumo de antidepressivos? Fomos sujeitos a pressões novas e intensas para que não estávamos preparados? A sociedade exigiu de nós novos e desafiantes desempenhos sem nos oferecer as condições mínimas para os cumprirmos sem nos destruirmos e às nossas relações com os que nos estão próximos? Entrámos numa competição absurda em que competimos mais com nós próprios do que com os outros?

O que um medicamento pode dizer de nós depende muito do significado que atribuirmos ao conjunto mais vasto de dados que nos são revelados. Começamos pelo mais básico, a população. Nas últimas três décadas a estrutura da nossa população sofreu transformações profundas. Fomos durante séculos um país de emigrantes e as nossas identidades colectivas devem muito ao imaginário e à experiência de outras paragens, às distâncias e estranhezas com que fomos construindo as proximidades e as intimidades que nos servem de raiz. No espaço de poucos anos, diminuiu drasticamente a emigração, sobretudo permanente, e passámos a importar imigrantes, primeiro africanos e brasileiros e, na última década, europeus de leste. Tornámo-nos numa placa giratória que importa e exporta migrantes, que serve de ponto de passagem aos que buscam, a partir de nós, paragens mais acolhedoras. Habituados a ver os nossos conterrâneos a servir nos restaurantes da Europa, vimo-nos, de repente, a ser servidos, em restaurantes portugueses, por croatas, ucranianos ou moçambicanos. E as novas caras, as novas línguas, as novas características fenotípicas não emergem apenas nos grandes centros urbanos. Penetram no âmago da nossa territorialidade, nas nossas aldeias e vilas.

Nas últimas décadas, a sociedade portuguesa absorveu dois importantes fluxos populacionais. Em meados da década de setenta foram os retornados das ex-colónias, mais de 500.000 em poucos meses; na última década foi a intensificação brusca da imigração. O primeiro fluxo permitiu que a sociedade portuguesa mostrasse a sua extraordinária capacidade de integração: uma enorme massa populacional espalhou-se pelo tecido social sem grandes convulsões e sem que servisse de matéria prima para a emergência de um partido de extrema direita. O segundo fluxo está em aberto e é ainda mais complexo porque são mais variadas as culturas e as línguas, porque são mais precárias as condições de fixação, porque há condicionantes europeias e, sobretudo, porque a sociedade portuguesa já não é a mesma da de meados da década de setenta. Somos hoje uma sociedade multicultural, mas quantos de nós se sentirão multiculturais ou, sequer, confortáveis com a ideia de multiculturalismo? Nós, que fomos durante décadas vítimas do racismo e da xenofobia, interiorizámos os valores da tolerância e do cosmopolitismo com que então nos defendemos ou, pelo contrário, aprendemos com quem nos humilhou a humilhar quem de nós precisa?

Qualquer destes dois fluxos de pessoas contribuiu para aumentar a nossa população, neutralizando a quebra da natalidade, a outra transformação profunda e rápida da estrutura da nossa população, juntamente com o envelhecimento da população, decorrente dessa quebra e também do aumento da esperança de vida. Em 1970, a fecundidade era em Portugal de 3,0 filhos por mulher; na década de noventa, era de cerca de 1,5 filhos. Foi uma das transições demográficas mais rápidas nas sociedades contemporâneas. Muitos factores contribuíram para ela: o 25 de Abril e a libertação dos homens e das mulheres em relação à ditadura reprodutiva da Igreja Católica; o acesso a contraceptivos; a alteração do estatuto social e económico das mulheres com a sua rápida e intensa inserção no mercado de trabalho; o decréscimo da mortalidade infantil; uma nova maneira de encarar a criação e a educação dos filhos, mais exigente e mais cara de levar à prática. No Inquérito do INE à Fecundidade e à Família de 1997 "a crise económica e o desemprego" era apontado por 80,4% dos inquiridos como o principal motivo da quebra da fecundidade, enquanto "os encargos financeiros de educar uma criança" eram apontados por 74,8%. No mesmo inquérito, 59,2% dos inquiridos considerava dois o número de filhos desejados.

Estas transformações tiveram repercussões significativas na família e na conjugalidade. A maior escolarização das mulheres e a sua intensa participação no mercado de trabalho adiou a idade do casamento e a idade do primeiro filho. Por sua vez, as relações familiares tornaram-se mais flexíveis, com a diminuição do casamento e o aumento das uniões de facto e do divórcio. As famílias tornaram-se mais pequenas e aumentou o número de indivíduos a viver sozinhos bem como o número das famílias monoparentais. Todas estas mudanças foram simultaneamente causas e consequências do défice de vasos comunicantes, de mecanismos compensatórios que atenuassem o stress das transformações ou permitissem que elas ocorressem mais lentamente. Os mecanismos compensatórios que faltaram foram, por exemplo, uma política feminista nos mercados de trabalho, as infra-estruturas de apoio à família em boas condições e a baixo custo (creches, jardins de infância, lares, serviços de proximidade), valores adequados das prestações familiares, o apoio eficaz à multiplicação de dependentes decorrente do envelhecimento da população.

O que melhor caracteriza a sociedade portuguesa neste momento é o facto de todas estas mudanças terem ocorrido de par com permanências e resistências à mudança igualmente importantes. A desmedida da sociedade portuguesa reside precisamente na intensidade das contradições e no enfraquecimento das mediações entre elas. Nela reside, por exemplo, a relação profunda entre o aumento do consumo de antidepressivos e a manutenção do elevado número de abortos clandestinos. Como nenhuma mulher aborta por gosto, o aborto é uma solução para a mulher que não tem outra solução. O aborto clandestino é algo muito distinto. É a assumpção de um alto risco físico e de uma ilegalidade só concebível à beira do abismo da autodestruição, o mesmo lugar onde se tomam os antidepressivos. Aqui reside a desmedida da contradição: como é possível que a sociedade que tanto se modernizou nas últimas décadas, que abriu às mulheres tantos espaços que antes lhes estavam vedados, que permitiu as uniões de facto e as uniões unisexuais, que produziu uma legislação progressista contra a toxicodependência, caia desarmada nas mãos de uma Igreja Católica ultramontana que manipula um primeiro ministro socialista e beato (ser católico é algo mais respeitável) para dar um golpe na vontade democrática do povo? Estamos a falar da mesma sociedade ou de duas sociedades que convivem em regime de apartheid?

Mas as permanências e resistências à mudança não são todas negativas. Pelo contrário, muitas delas são responsáveis por que a desmedida não tenha redundado em caos ou em perda irreversível de coesão social. Uma delas é o que temos designado por sociedade-providência. Trata-se das redes de entreajuda, baseadas em laços de parentesco ou de vizinhança, através das quais pequenos grupos sociais trocam bens e serviços numa base não mercantil, antes solidária ou de reciprocidade. Com mais rigor talvez devêssemos falar de mulheres-providência em vez de sociedade-providência, já que são as mulheres quem suporta os encargos e as prestações de que é feita a sociedade-providência. Entre muitas outras vertentes, a sociedade-providência é ainda hoje forte nas relações entre pais e filhos. Por quanto tempo o será é uma questão em aberto. Neste domínio, a sociedade-providência funciona ao invés do Estado-providência no âmbito da segurança social pública. Enquanto nesta última são os jovens de hoje que pagam as pensões dos mais velhos de hoje, tal como estes, quando mais novos, pagaram as pensões dos mais velhos de então, na sociedade-providência são os mais velhos de hoje a contribuir para o bem estar dos mais novos de hoje. Assim, os casais jovens continuam muitas vezes a beneficiar da solidariedade dos pais, apesar de a residência já não ser comum, na guarda das crianças, nas refeições conjuntas, nas relações de sociabilidade e lazer.

Essas prestações solidárias explicam em parte o acesso dos mais jovens aos bens de consumo mais caros, como carros e equipamentos domésticos, e mesmo o acesso à casa própria. Neste último caso, a ajuda dos pais é muitas vezes fulcral, quer no caso da auto-construção (sobretudo através da doação de terrenos), quer no pagamento da "entrada" para aquisição do apartamento ou na facilitação do acesso ao crédito. Onde termina a sociedade-providência, começa o sobretrabalho (o recurso a trabalhos suplementares para reforçar o orçamento doméstico) e o endividamento que, como é sabido, tem aumentado drasticamente nos últimos anos. A resistência da sociedade-providência é fonte de perplexidade, tanto para portugueses, como para os estrangeiros interessados em conhecer a nossa sociedade. Será um resíduo pré-moderno? Será o modo específico de Portugal se inserir sem grandes traumas num processo acelerado e contraditório de modernização? Será o modo pós-moderno de quem não teve tempo de amadurecer no individualismo da modernidade? Em qualquer dos casos, a sociedade-providência não substitui o Estado-providência. Sem ela, no entanto, o fraco Estado-providência que temos teria muito menos condições para disfarçar a sua fraqueza.

Perante a turbulência das rupturas e das continuidades, os portugueses estão divididos entre a vontade de navegar e a vontade de ancorar. Navegar significa viajar para onde o quotidiano não dói. Ancorar significa ter a certeza da segurança contra as tempestades do risco. Uma e outra vontades apelam para tipos de sociedade em que nós, portugueses, ainda hoje apenas vivemos parcialmente. A vontade de navegar apela à sociedade de consumo, sobretudo dos consumos culturais. A vontade de ancorar apela à sociedade dos direitos. Quanto à vontade de navegar, é evidente a tendência para o crescimento dos consumos culturais e das práticas de lazer dos portugueses, muito associada ao crescimento das classes médias urbanas, ao aumento dos níveis médios de escolarização e à intensificação destas práticas entre as camadas juvenis. É manifesto, ao longo dos últimos trinta anos, o domínio esmagador das práticas culturais realizadas na esfera doméstica e, portanto, a sua prevalência relativamente às que se dirigem para o espaço público. Entre as práticas domésticas, destaca-se claramente a televisão que é, a uma distância muito grande de todas as outras, a actividade cultural que maiores taxas de consumo revela. A televisão apresenta-se, de resto, como o produto cultural de consumo socialmente mais transversal. O peso esmagador que os consumos televisivos ocupam nos consumos culturais dos portugueses enuncia um traço importante da cultura de massas no nosso país. É que embora, do lado da oferta, seja visível a expansão crescente de outras expressões da cultura de massas (cinema, imprensa, livro, música), a verdade é que elas são hoje muito pouco massificadas entre nós. Do lado dos consumos, só a televisão parece constituir-se como um campo de inequívoca afirmação da cultura de massas em Portugal.

O que estes dados sobre os consumos culturais não revelam é a diferenciação social no acesso à cultura. Navegar para longe do quotidiano penoso continua a ser entre nós um privilégio de alguns. O nível de instrução, a condição sócio-profissional, a idade e a residência (urbana ou rural) continuam a ser factores muito diferenciadores no acesso à cultura.

Para além disto, os dados apresentam ainda alguns pormenores que vale a pena reter: a crise do teatro, bem manifesta na queda continuada da frequência; a quebra do cinema até meados da década de noventa, ajudada pela concorrência do vídeo e televisão, e a recuperação a partir de então, muito auxiliada pelo incremento dos consumos juvenis e pelo surgimento das salas multiplex em espaços comerciais, onde a dimensão convivial e lúdica parece ser um factor crucial para impulsionar a apetência pela cultura; a tendência ténue, mas visível, para o aumento dos hábitos de leitura, que não deve ser desvinculada da intensificação da aposta governamental, sobretudo no último governo, na expansão da rede nacional de bibliotecas; a alteração no mercado editorial, com aumento dos títulos editados (e portanto com diversificação da oferta), mas redução das tiragens, atestando as limitações do mercado nacional; os baixos níveis de leitura de jornais, que não deve iludir no entanto a recente expansão do mercado das revistas (temáticas e orientadas para públicos segmentados).

Em mais uma manifestação de como a sociedade portuguesa se furta a ser lida de modo simplista pelos dados quantitativos que dela se extraem, é importante ter em conta que os dados relativos ao número de horas despendido em diversos tipos de actividades (inquérito aos usos do tempo) não ilustram cabalmente a importância que as práticas de lazer com maior componente de sociabilidade e convivialidade desempenham nos hábitos dos portugueses. Na verdade, se é certo que, de modo geral, as chamadas "saídas culturais" têm uma baixa expressão entre os portugueses, quando comparadas com os consumos culturais domésticos, uma excepção deve ser aberta para as práticas de saída de cariz mais convivial, que revelam em geral forte expressão entre nós: saídas em família ou com amigos para passeio (nos parques, praia, centros comerciais, centros das cidades), para restaurantes, visitas entre amigos e familiares. Esta dimensão, se é certo que de um certo ponto de vista pode reflectir um prolongamento do espaço doméstico fora da casa (muitas vezes para outras casas), enuncia também uma propensão para o uso do espaço público que os indicadores relativos às formas culturais mais convencionais parecem negar. E não será esta mais uma dimensão - a dimensão expressiva - da sociedade-providência?

Os portugueses navegam, pois, como podem e à sua maneira. Não navegam à toa e é bem evidente a vontade de ancorar. E a vontade de ancorar significa consumir ou divertir-se sem o espectro do desemprego ou da desvalorização da pensão de reforma, sem o risco de ocorrência de despesas incomportáveis na educação dos filhos, na manutenção da saúde da família, sem o medo de ser vítima de fraudes imobiliárias ou outras, de crimes, acidentes ou ilegalidades sem receber indemnizações devidas. Estas âncoras pressupõem nas sociedades modernas a vigência ampla e eficaz de uma sociedade de direitos. Aqui reside uma das desmedidas mais inquietantes da sociedade portuguesa. Trata-se da discrepância, particularmente elevada no contexto europeu, entre a declaração formal dos direitos cívicos, políticos, económicos, sociais e culturais e a sua efectiva aplicação. Esta discrepância tem múltiplas causas: a continuidade de uma cultura autoritária e de submissão que não tem deixado desenvolver uma cultura democrática, de cidadania activa, reivindicativa dos seus direitos; a debilidade dos movimentos sociais que vulnerabiliza o acesso aos direitos por parte daqueles que mais necessitam deles; a presença de fortes grupos de pressão que privatizam o Estado e transformam em pseudo-direitos os privilégios que obtêm no negócio de pilhar os bens públicos; uma justiça morosa, ineficaz, corporativa, ainda dominada por uma cultura laxista que deixa impune desempenhos deficientes.

A continuar, esta discrepância chocante entre o país oficial dos direitos e o país real da denegação impune dos direitos vai tirar aos portugueses a âncora das expectativas fundadas e, com o tempo, pode mesmo aniquilar-lhes a vontade de ancorar. E como sem âncora não se navega, a sociedade portuguesa poderá ficar bloqueada no cais de embarque, atulhada de equipamentos para viagens vertiginosas mas, em verdade, apenas vertiginosamente parada. Para que tal não aconteça, os portugueses terão de saber que na Europa de que fazem parte os direitos de cidadania não foram historicamente uma concessão desinteressada das classes dominantes ou das elites políticas. Foram antes uma conquista difícil, resultado de lutas sociais frequentemente consideradas, no seu início, criminosas ou utópicas. A vontade da viagem tem de se manter intacta e forte para que não desistamos facilmente da vontade de ter âncora.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos