Nos próximos tempos vamos ouvir os apelos da nova maioria às virtudes e capacidades da sociedade civil (SC), a quem devem ser devolvidas responsabilidades que até agora foram assumidas pelo Estado. O conceito de SC é um conceito central da teoria política liberal que designa o conjunto dos interesses que devem ser prosseguidos sem interferência do Estado. Ao longo dos últimos 150 anos este conceito passou por múltiplas transformações. Se inicialmente os interesses contemplados pela SC eram apenas os da burguesia, integraram-se nela gradualmente muitos outros interesses de outras classes e grupos sociais. Ao lado da SC dos negócios surgiu a SC da solidariedade. Por outro lado, foi-se tornando claro que a SC, para se desenvolver, exigia alguma intervenção do Estado, e a contestação política passou a centrar-se no sentido e medida dessa intervenção. A direita liberal pretendeu uma intervenção menor e, de preferência, de apoio às empresas: "uma SC forte pressupõe um Estado fraco". A esquerda social democrática pretendeu uma intervenção maior e socialmente diversa: "uma SC forte pressupõe um Estado forte".
À luz disto, é de prever que os apelos do novo governo à SC suscitem outros com diferentes conteúdos políticos. Torna-se claro que circulam na sociedade portuguesa vários conceitos de SC. Distingo quatro. A SC(1) é constituída pelos interesses económicos privados, do capital industrial, financeiro e comercial. É esta a SC a que apelará o novo governo e que conduzirá à privatização do que resta do sector empresarial do Estado, à privatização parcial dos serviços públicos, sobretudo da saúde e da segurança social, e a uma política fiscal regressiva. A SC(2) é constituída pelos movimentos sociais e pelos sindicatos que vão ser convocados a um novo activismo. No caso do movimento sindical, a sua força vai depender da sua unidade e esta vai depender das transformações no PCP e, portanto, nas cúpulas da CGTP que ele controla. A SC(3) é constituída pela organizações não-governamentais. Trata-se de um conjunto politicamente muito diversificado onde coexistem organizações autónomas com outras totalmente dependentes do Estado. É de prever que as ONGs ligadas à Igreja Católica sejam as mais apoiadas pelo novo governo.
Finalmente a SC(4) é constituída pelas iniciativas que designo por constituintes porque são sementes da emergência de um novo tipo de sociedade, assente em modelos alternativos de desenvolvimento, de cultura, de educação, de criação cultural, de relação sociedade/natureza. São iniciativas que criam novos e mais elevados patamares de dignidade humana. Entre nós, a mais notável dessas iniciativas é o Centro para o Estudo das Artes de Belgais, criado pela Maria João Pires. Em Belgais constroi-se uma nova ideia de país que passa totalmente à margem do país oficial e dos interesses que o constituem. A excelência desta iniciativa consiste em que, sendo nossa e tendo nas crianças e nos jovens da Beira Baixa um dos seus públicos-alvo, é também um património universal e confere a Portugal uma competitividade internacional insuspeitada para os nossos economistas. A força de Belgais está em que, necessitando do apoio do Estado, nunca tal apoio poderá comprometer a sua autonomia. Este deve ser o conceito de sociedade civil que mais interessa promover no nosso país.