23-03-2002 O Expresso - Revista
A 9 de Março o Expresso publicou uma entrevista de António Manuel Baptista (AMB) sobre um livro seu em que ataca violentamente o meu livro Um Discurso sobre as Ciências (UDSC). O livro de AMB é insultuoso, irracional na sua virulência, mostrando um total desconhecimento dos debates epistemológicos dos últimos vinte anos, distorcendo e falsificando as minhas posições, partilhadas por muitos epistemólogos e cientistas, furtando-se, através desse artifício, ao labor de efectivamente as refutar.
É surpreendente que seja agora e desta forma que venha ser posto em causa um livro publicado há 15 anos. Neste prossegui os seguintes objectivos. (1) Mostrar que, nos inícios da década de oitenta, o debate epistemológico sobre as condições de validade e de rigor do conhecimento científico deixara de ser um debate entre filósofos e cientistas, como fora antes, para passar a ser um debate entre cientistas, o que era, em si mesmo, o resultado do avanço extraordinário da ciência desde o início do século XX. Daí que nesse livro cite muito poucos filósofos da ciência e quase nenhum sociólogo da ciência. O meu argumento é construído na base de reflexões de cientistas, na grande maioria físicos. (2) Mostrar que o positivismo científico estava em crise à medida que a história, a contingência, a incerteza, a irreversibilidade e a complexidade faziam a sua entrada na ciência, não como corpo estranho, mas como produtos do próprio desenvolvimento científico. (3) Mostrar que o debate epistemológico abria novas perspectivas às relações entre as ciências físico-naturais e as ciências sociais. Procurei fundamentar as minhas posições com razões que obviamente são falíveis, susceptíveis de refutação, mas só por outras razões que razoavelmente as revelem como incorrectas ou inadequadas. O único debate possível é com positivistas sérios que façam jus ao rigor, à objectividade com que, segundo eles, a ciência se eleva acima dos contextos culturais, sociais e políticos em que é praticada, o que não é o caso do escrito de que sou alvo.
Passo, pois, a repor as minhas posições pela ordem por que são falsificadas na entrevista.
1. Sobre Einstein. Espanta-se AMB que eu considere Einstein o "primeiro rombo no paradigma da ciência moderna, aliás, mais importante do que o que Einstein foi subjectivamente capaz de admitir" (UDSC, p.24). De facto, esta posição é dominante entre historiadores da física. Rombo significa ruptura parcial. Por um lado, a teoria da relatividade, que veio restringir a validade da física newtoniana ao domínio das velocidades pequenas e dos campos gravitacionais fracos, é considerada a realização culminante da física clássica. Por outro lado, Einstein, que contribuiu de modo fundamental para a mecânica quântica, nunca quis admitir que com ela se pusesse em causa o determinismo e por isso rejeitou a interpretação de Copenhaga. Estas mesmas ideias estão expressas, por exemplo, em O Código Cósmico, do físico Heinz Pagels: "Albert Einstein é uma enorme figura de transição na história da física... da transição da física Newtoniana para a teoria quântica... Mas a grande ironia foi que Einstein, que abriu o caminho para a nova teoria quântica que despedaçou a imagem determinista do mundo, rejeitou a nova teoria quântica. Ele não podia aceitar intelectualmente que os fundamentos da realidade física fossem governados pelo acaso" (p.25). Verdadeiramente espantoso é o espanto de AMB, porque esta citação é de um livro publicado pela Gradiva, com tradução revista e apresentada por... AMB.
2. Sobre o princípio da incerteza. AMB cita-me como dizendo que "não se podem medir simultaneamente os erros da medição da velocidade e da posição das partículas" e comenta, ironizando, que "não se sabe o que seja medir erros de medição". É de facto um disparate, mas que assenta numa falsificação grosseira do que eu escrevo. A citação exacta é: "não se podem reduzir simultaneamente os erros da medição da velocidade e da posição das partículas" (UDSC, p. 26). Entre "medir um erro" e "reduzir um erro" vai toda a distância. Quem faz a confusão e dela tira tantas ilações, ou é incompetente ou está de má fé. O que digo é apenas que estamos perante "observáveis incompatíveis": as condições experimentais que permitem medir com grande precisão a quantidade de movimento das partículas são distintas das que permitem medir com grande precisão a sua posição e por isso não podem ocorrer simultaneamente.
3. As ciências naturais e as ciências sociais. O autor declara que ciência há só uma, a ciência natural, e que tudo o mais, nomeadamente a sociologia e as "chamadas ciências culturais", nada tem a ver com a ciência. AMB mostra desconhecer o debate que surgiu no início do séc. XX sobre a distinção entre ciências nomotéticas (que no livro de AMB são "nomótecnicas") e ideográficas e os que se lhes seguiram até aos anos 60. Depois destes debates e da própria institucionalização das ciências sociais, foi-se sedimentando a ideia de que a ciência tem modos diversos de ser exercida e que é nessa pluralidade metodologicamente controlada que reside verdadeiramente o dinamismo da empresa científica. A esta luz, a posição de ABM é um anacronismo.
4. Filosofia do conhecimento. AMB mostra uma estupefacção alarve ante afirmações que descontextualiza e cuja inserção numa longa tradição filosófica é incapaz de vislumbrar. Assim, a expressão "todo o conhecimento científico-natural é científico-social" decorre da complexidade que rodeia hoje a distinção entre natureza e sociedade e, para a fundamentar, apresento razões que corroboro com posições coincidentes de físicos de quem compreensivelmente AMB não gosta. Claro que, com base na mesma complexidade, é possível defender a posição oposta, ou seja, a de que "todo o conhecimento científico-social é científico-natural". Tem sido defendida e com razões razoáveis. Não é, contudo, o caso de AMB. Por outro lado, a expressão "todo o conhecimento é auto-conhecimento" tem uma longa tradição na filosofia ocidental de Sócrates a Hume, a Heidegger e a Wittgenstein. Pior que a arrogância só a ignorância arrogante.
5. Pósmodernismo e relativismo. É ilegítimo que AMB retire das suas poucas leituras sobre este tema a confusão entre relatividade do conhecimento e relativismo. A distinção é crucial e funda a posição que defendo. A confusão está na base do espanto de AMB sobre a expressão "todo o conhecimento é local e total". É uma formulação sintética sobre os novos debates a respeito do conceito de totalidade e de sistemas de referência. Deles decorre a perspectiva de que as totalidades são contextuais, isto é, locais mesmo quando assentam na afirmação da sua validade para além ou acima de todos os contextos. Todas as culturas têm concepções de verdades últimas, mas como são várias essas concepções nenhuma delas tem a totalidade de que se arroga. Em Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition, Nova Iorque: Routledge, 1995, (p. 338) afirmo: "Todas as culturas são relativas, mas o relativismo cultural como postura filosófica é errada... Contra o relativismo devemos desenvolver critérios processuais inter-culturais que nos permitam distinguir política progressista de política regressiva, capacitação de desarme, emancipação de regulação".
6. Porquê? Este escrito e o modo como ele tem sido promovido suscita uma questão sociológica: porquê agora e desta forma? Qual o objectivo de toda esta virulência e do ataque pessoal? Suspeito que este escrito tem menos a ver com uma necessidade súbita, mas genuína, da comunidade científica do que com o perfume do poder que está a inebriar uma nova direita sobre a ciência e a educação. É uma direita temerosa de que as ideias críticas levem os seus filhos à perdição ou os impeçam de aceder a uma cultura científica quando foi no confronto de ideias e na criatividade da crítica que se constituiu a cultura científica moderna. Pretende esta nova direita ultrapassar o atraso científico e educacional do país com o recurso a concepções de ciência e de educação elas próprias atrasadas. O dilema desta direita é que a forma como se pretende rejuvenescer mais a envelhece.