Centro de Estudos Sociais
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02-05-2002        Visão
Em 1848 Marx e Engels anunciavam que um espectro assombrava a Europa, contra o qual todos os poderes da velha Europa se uniam, tentando exorcizá-lo. Esse espectro era o comunismo, a luta dos operários contra o capitalismo que transformara a dignidade pessoal em valor de troca e reduzira todas as liberdades a uma só, a do comércio livre: "estes operários... são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio e estão, por isso, igualmente expostos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as oscilações do mercado".
No passado século e meio, este espectro foi exorcizado por três vias principais: a social-democracia, o comunismo soviético e o nazi-fascismo. Os dois últimos, depois do holocausto e do gulag, passaram de exorcismos a outros tantos espectros a exorcizar. E para os exorcizar restou apenas a social-democracia. Desde há duas décadas, a globalização neoliberal tenta transformar a social-democracia num espectro a exorcizar pelo comércio livre. A esquerda europeia, legítima herdeira da social-democracia, não se deu conta de que, ao aceitar exorcizá-la, em nome do neoliberalismo, se ia a pouco e pouco transformando, ela própria, num espectro de si mesma. Teremos fechado o círculo? Será que o neoliberalismo está a transformar-se, igualmente, de exorcismo em espectro? Será esse espectro o neofascismo?

A história não se repete, embora não deixe de ser perturbador que os grupos sociais que menos integração obtiveram na social-democracia ou que mais rapidamente estão a ser dela expulsos – os jovens e os trabalhadores atingidos pela precarização da relação salarial – se sintam numa situação algo semelhante à descrita pelo Manifesto Comunista. A história europeia mostra que o espectro de uns foi o exorcismo de outros, e vice-versa. Daí a importância crucial do modo como se define o espectro.

À direita europeia interessa que o espectro seja definido como neofascismo. Com isso ela conseguirá o esvaziamento definitivo da esquerda, já quase exangue. É uma armadilha em que a esquerda europeia facilmente cairá, tão profunda está nela inscrita a luta antifascista. Para sobreviver, no entanto, a esquerda não poderá cair nela. Em minha opinião, o espectro não é o neofascismo mas algo de mais novo. É um espectro bicéfalo. A sua primeira cabeça é a eventualidade de, à medida que a democracia perde a sua capacidade para redistribuir riqueza social, estarmos a caminhar para sociedades que são politicamente democráticas mas socialmente fascistas. O novo fascismo não é, assim, um regime político; é antes um regime social, um sistema de relações sociais muito desiguais que coexiste cumplicemente com uma democracia política socialmente desarmada. A segunda cabeça do espectro é a tentação hegemónica de se pensar que a primeira cabeça do espectro pode ser exorcizada nos países ricos mediante a contínua e crescente exploração e humilhação dos países pobres. Esta segunda cabeça é a globalização neoliberal e é a mais insidiosa porque, no deserto de alternativas por ela criado, se arroga credivelmente ser a única solução do problema que ela própria constitui.

Nesta definição, o espectro, longe de ser europeu, é global e só pode ser exorcizado globalmente. Isto significa que as lutas locais e nacionais têm de ser articuladas globalmente, no pressuposto de que não é possível outra Europa mais solidária sem que outro mundo, mais solidário, seja igualmente possível.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos