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29-05-2002        Visão
Vão maus os tempos para a ideia de serviço público no nosso país. O governo e os meios de comunicação social que lhe servem de caixa de ressonância têm vindo a abrir várias frentes de ataque ao serviço público. Duas delas são particularmente virulentas: o «inchaço» e a ineficiência da função pública e o «inchaço» e o despesismo da RTP. São ataques distintos mas a ambos subjaz o mesmo pressuposto, o de que o mercado é superior ao Estado, sendo por isso necessário que os critérios de mercado funcionem como disciplinadores da acção do Estado. É de prever que estes ataques se acentuem nos próximos tempos, que abranjam mais áreas e que o seu pressuposto apareça cada vez mais à luz do dia convertido em novo senso comum. A razão deste movimento é simples. Estão a iniciar-se na Organização Mundial do Comércio os trabalhos referentes ao próximo round de liberalização do comércio: depois da liberalização dos produtos, será a liberalização dos serviços. Muitos desses serviços, que são hoje «serviços públicos» têm potencialidades mercantis quase infinitas. Para que tal aconteça sem grande perturbação social é necessário que a ideia de serviço público vá sendo desmoralizada. A estratégias mais eficaz consiste em partir de generalizações falsas, tomar medidas cegas e justificá-las com argumentos populistas (contra o «esbanjamento do dinheiro dos contribuintes»). É o que está a acontecer entre nós.

Para ser eficaz, esta política tem de fazer omissões escandalosas do ponto de vista dos direitos de cidadania e dos valores democráticos. No caso da função pública, tem de omitir três factos: 1. a integração nos quadros da função pública foi muitas vezes o resultado do cumprimento de leis que o Estado durante muito tempo impôs a outros empregadores mas que ele próprio se dispensou de cumprir. 2. nos últimos seis anos o nosso país deu passos importantes na consolidação de um Estado-Providência e foram as novas tarefas que exigiram outras qualificações para as quais os «velhos» funcionários não estavam preparados. 3. justificadas como actuando contra os «excessos», as medidas omitem o impacto negativo que os despedimentos terão na qualidade de vida dos cidadãos (para já não falar na dos funcionários despedidos).

No que respeita à RTP, as principais omissões são as seguintes: 1. durante o cavaquismo a RTP foi sujeita a uma pilhagem sistemática feita com o objectivo de favorecer a televisão privada. A estratégia visou colocar a TV pública num dilema mortal: se é forte, faz concorrência desleal à TV privada; se é fraca, precisa de recorrer aos privados para se «fortalecer».2. A identidade de um serviço público de televisão é o espelho da identidade do país. A importância que se atribui à TV pública é o espelho da importância que se atribui: à informação equilibrada, plural e autónoma; às especificidades culturais, sociais e regionais do país; à promoção da inovação audiovisual para além do que o mercado garante; à formação da coesão nacional, não nacionalista mas também não desarmada ante agentes económicos e culturais sem qualquer lealdade ao país; à resposta democrática à diversidade das exigências dos públicos independentemente da sua capacidade de consumo dos bens objecto de publicidade; à vontade política de promover o espectador-cidadão em detrimento do espectador-consumidor. 3. Dado o impacto da televisão no nosso país quem ataca o serviço público de televisão fá-lo para promover uma identidade nacional inerme, uma sociedade mercantil excludente, uma cultura política autoritária.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos