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13-06-2002        Visão
A qualidade da democracia testa-se nos momentos de crise. São momentos de crise todos aqueles em que as regras de jogo e as instituições democráticas são pressionadas a produzir resultados semelhantes aos que seria possível produzir se tais regras e instituições não existissem. O modo como estas regras e instituições reagem perante tais pressões críticas determinam a qualidade e o grau de consolidação da democracia. A política do Governo sobre o serviço público de televisão (SPT) tem vindo a desdobrar-se numa série de pressões críticas susceptíveis de criar uma situação de crise. A primeira pressão crítica consistiu no modo como investiu contra o SPT. Dado que, no contexto europeu, um SPT forte e com presença efectiva no campo audiovisual é uma das instituições quasi-políticas do sistema democrático, a actuação do novo governo só faria sentido (e seria certamente bem vinda) se atacasse as fraquezas do nosso actual SPT e tomasse medidas para o fortalecer. Em vez disso, o governo utilizou as fraquezas do actual SPT para investir contra o próprio princípio do SPT. Quem melhor entendeu o sentido desta política foram os ideólogos neoliberais e o mercado, os dois pilares da luta contra a especificidade europeia no domínio do audiovisual. Os primeiros produziram de imediato a teoria pronto-a-vestir da possibilidade e até da excelência do SPT prestado por agentes privados, enquanto o mercado reagiu, fazendo subir as acções das empresas privadas de televisão.

A segunda pressão crítica consistiu na utilização da maioria parlamentar para fazer promulgar legislação "retroactiva" susceptível de neutralizar uma decisão do Conselho de Opinião contrária à política do governo. No momento em que escrevo não é ainda conhecida a decisão do Tribunal Constitucional a respeito das alterações à Lei da Televisão. Se ela for no sentido da inconstitucionalidade podemos dizer que as regras e as instituições democráticas aguentaram bem esta pressão e deram testemunho da consolidação da nossa democracia. Resta saber, no entanto, como reagirão se o governo persistir na sua política à beira do abismo e insistir em novas pressões críticas. Uma, no entanto, lhes parece vedada – o que é um bom augúrio para a nossa democracia – aquela a que recorreu o Presidente da Argentina, Carlos Menem, em 1991. Inconformado com uma decisão do Supremo Tribunal contrária à sua política, apressou-se a aprovar uma lei que permitia aumentar o número de juizes nomeados pelo Presidente. Preencheu as vagas com pessoas da sua confiança e logo depois o Tribunal revogou a decisão anterior.

Mas o governo tem ao seu dispor outras pressões críticas. Uma delas é a declaração da falência da RTP na esperança de que, ante o caos produzido no SPT, as resistências finalmente se dissipem. Numa sociedade que padece da síndrome do oito-oitentismo não admira que das indecisões do governo anterior se pretenda passar a um decisionismo cego do qual a nossa democracia não saia ilesa. A minha suspeita é, pois, que as regras e as instituições democráticas vão ser sujeitas a novas pressões. Assim sendo, a defesa de um forte e actuante SPT transforma-se numa luta pela defesa da democracia em geral. Nela devem participar todos os movimentos sociais e organizações da sociedade civil cujos êxitos sectoriais dependem da qualidade da nossa democracia, sejam eles sindicatos, associações cívicas e de defesa dos direitos humanos, associações culturais e de desenvolvimento local, movimentos ecológicos e feministas e organizações não governamentais de solidariedade internacional.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos