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29-08-2002        Visão
Um balanço perturbador

Um ano depois da sua ocorrência, não é possível analisar as causas do 11 de Setembro sem analisar as suas consequências. No entanto, a este respeito ocorre uma disjunção perturbadora. Um ano depois, o 11 de Setembro é tão misterioso nas suas causas como transparente nas suas consequências. Enquanto as perguntas "por que ocorreu?" e "como foi possível que ocorresse?" continuam a desafiar a imaginação e a capacidade analítica dos cientistas sociais e dos comentadores políticos, as consequências estão à vista de todos. Em 11 de Setembro de 2002 o mundo é mais injusto, mais violento, mais inseguro, mais opaco, menos democrático.

Em 10 de Setembro de 2001, estavam em curso discussões no Banco Mundial, no FMI e noutros foros internacionais sobre alterações no sistema financeiro internacional, nas regras do endividamento dos países pobres, na ajuda internacional, nos processos de decisão das instituições financeiras multilaterais de modo a aliviar a pobreza no mundo segundo as metas estabelecidas na cimeira do milénio convocada pela ONU. Estas discussões colapsaram com menos estrondo que as Torres Gémeas, mas, por agora, com a mesma aparente irreversibilidade. Estavam igualmente em curso os trabalhos preparatórios da Conferência da ONU sobre o desenvolvimento sustentável que acaba de se realizar em Joanesburgo. Era já evidente que os países ricos, uma década depois da Cimeira do Rio, estavam menos inclinados do que nunca a comprometer-se com metas e prazos na mudança do modelo de desenvolvimento e na eliminação da injustiça mundial que este agrava cada dia. Nos primeiros momentos após o 11 de Setembro pensou-se numa inversão auspiciosa de curso suscitada pela ideia de que a solidariedade internacional seria a melhor resposta contra terroristas interessados em dramatizar o fosso entre países ricos e países pobres. Em verdade, em vez de inversão, houve acentuação de curso empresas multinacionais cada vez mais transformados em interesses nacionais dos países com os interesses das ricos. Os resultados da Conferência de Joanesburgo (ou a falta deles) são o espelho do novo (e velho) egoísmo internacional.

O complexo militar-industrial, também chamado keynesianismo militar, ressuscitou da sua morte anunciada pelo fim da guerra fria. O multilateralismo que, com altos e baixos, dominou nas relações internacionais nos últimos cinquenta anos, deu lugar ao unilateralismo protagonizado pelos EUA com a consequente humilhação dos aliados, nomeadamente a União Europeia, e a redução à irrelevância das mais importantes instituições multilaterais do pós-guerra: as Nações Unidas e a NATO. Embora viesse de trás, desde a eleição de Bush, a pulsão unilateralista ampliou-se dramaticamente depois do 11 de Setembro com a guerra contra o Afeganistão, a confirmação da recusa da ratificação do Protocolo de Kioto sobre o aquecimento global e a cruzada contra o tribunal penal internacional. Esta cruzada, em particular, pareceu absurda para boa parte da opinião pública mundial, já que as atrocidades cometidas por Bin Laden e seus acólitos configuravam um crime contra a humanidade, precisamente o tipo de crime para cuja punição foi criado o tribunal penal internacional. A verdade é que a administração norte-americana se apressou a declarar que se não tratava de um crime contra a humanidade e sim de um acto de guerra contra os EUA. Em vez de uma resposta judicial, exigia-se uma resposta militar, e a resposta foi a guerra contra o Afeganistão. A injustiça desta guerra -- para além do facto de nunca se ter averiguado o envolvimento efectivo dos fanáticos do governo de Kabul no terror que assolou os EUA - residiu em que nela morreram tantos ou mais civis inocentes quantos os que morreram na Torres Gémeas ou no Pentágono. Esta simetria macabra, que mais pareceu obra de um instinto de vingança do que de um desígnio militar - que, aliás, não foi atingido: "Bin Laden, vivo ou morto" à boa maneira do Far West - foi, no entanto, substituída pelos media globais pela disjunção entre as imagens dramáticas do horror nos EUA e a abstracção do conceito de "danos colaterais" em comunicados militares sem imagens nem estatísticas. No teatro de guerra, para que haja contagem de mortos são necessários soldados vivos no terreno para a fazer. As bombas não sabem contar e os satélites só se interessam pelo terreno antes dos ataques.
Mas a unilateralidade das decisões e o consequente acréscimo da violência na resolução de conflitos e da insegurança de populações inocentes não se reduziu à Ásia Central. De facto, transformou-se numa versão nunca antes tão generalizada da doutrina do realismo político segundo a qual cada Estado deve resolver os conflitos em que está envolvido de acordo com o seu interesse nacional e com meios exclusivamente definidos em função do seu poder relativo ao do dos seus inimigos. Foi assim que o conflito israelo-palestiniano - para muitos, uma das causas próximas dos ataques às Torres Gémeas e ao Pentagono- em vez de se resolver, se agravou. Apoiado, como nunca, pelos EUA, Sharon pôde transformar a agressão contra o povo palestiniano em guerra contra o terrorismo e de transformar a Palestina num pequeno Afeganistão, com a agravante de a violência, igual na desmedida, ser mais duradoura e ocorrer em zonas densamente populadas. Foi assim que, igualmente apoiado pelos EUA, o Presidente da Colômbia, André Pastrana, cancelou unilateralmente as negociações de paz com as forças da guerrilha, lançando o país numa onda de violência sem precedentes onde as vítimas, mais uma vez, são quase sempre civis inocentes. Foi assim que o Presidente Putin da Rússia se sentiu internacionalmente apoiado para investir com renovada violência e cometer todas as violações dos direitos humanos na luta contra os rebeldes da Tchechenia.

Um mundo, pois, mais injusto, violento e inseguro. Mas também um mundo mais opaco e menos democrático. E esta opacidade e perda de democraticidade propagou-se a todas as regiões do globo, mesmo àquelas onde a transparência da informação e a democracia são os mitos fundadores da nação, como é o caso dos EUA. Uma nova equação foi criada entre segurança nacional, por um lado, e direitos humanos e primado da lei, pelo outro, nos termos da qual os valores da liberdade e da igualdade perante a lei têm de pagar um preço mais alto do que antes para que seja possível garantir o valor da segurança. Foi chocante, ainda que compreensível pelo pânico do momento, observar o alinhamento acrítico dos meios de comunicação social com a versão oficial dos acontecimentos. Foi chocante o interrogatório (e, por vezes, a detenção) de um número indefinido de estrangeiros (imigrantes, estudantes, residentes de longa data), apenas pela sua ascendência árabe, e a estigmatização pública dos que manifestaram reservas como, por exemplo, reitores de universidades prontamente apodados de anti-patriotas e simpatizantes de terroristas. Pouco depois foi promulgada uma nova lei - a USA Patriot Act - que atribuiu novas competências às políticas de investigação, cerceou os direitos e as liberdades dos investigados e criou instituições paralelas às existentes, menos sujeitas ao respeito pelas garantias processuais. Com a justificação absurda que um não cidadão suspeito não pode gozar dos mesmos direitos de que o cidadão no tribunal comum, foram criados tribunais militares onde não há publicidade, as detenções são por tempo indeterminado e as garantias de defesa fortemente cerceadas. Aliás, a estes tribunais podem ser igualmente sujeitos cidadãos americanos desde que sejam declarados "combatentes inimigos". Perturbador é que quem determina quem é suspeito de actividades ou simpatias terroristas ou quem é combatente inimigo são as autoridades político-administrativas sem contraditório nem recurso. Com a nova lei ficou claro que quem pensa que o seu correio electrónico é privado vive numa doce ilusão. Tal como quem pensa que as suas preferências de leitura numa biblioteca pública só a ele dizem respeito. De facto, os bibliotecários podem ser solicitados a informar a polícia sobre as preferências de leitura e, no caso de o serem, não podem informar os seus superiores da natureza da solicitação.
Uma análise difícil

O balanço que acabo de fazer é tanto mais perturbador quanto persiste a disjunção entre a evidência das consequências do 11 de Setembro e a opacidade das suas causas. Este ano foi, de facto, um ano difícil para os cientistas sociais e para os seus intentos de explicar, contextualizar ou compreender a tragédia humana das Torres Gémeas e do Pentágono. As dificuldades tiveram duas causas principais que, apesar de relacionadas, são diferentes.
A primeira reside no predomínio das teorias da conspiração. As teorias da conspiração procuram as causas de acontecimentos graves na acção clandestina e singularizada de indivíduos ou grupos de indivíduos, nos seus motivos e métodos. A explicação está na identificação destas acções individuais e não no contexto social e político em que ocorrem. Para resolver o problema não é preciso conhecer a sociedade, basta identificar e eliminar os culpados. A credibilidade das teorias da conspiração é, em geral, pequena porque estas acolhem hipóteses hiperbolicamente contraditórias sem que seja possível determinar qual delas é verdadeira. Apesar disso, as teorias da conspiração florescem em certos períodos, e um deles foi certamente o ano que passou. As hipóteses não podiam ser mais contraditórias e mirabolantes. De um lado, estão aqueles que defendem que os ataques, se não foram orquestrados pelos serviços secretos americanos, foram, pelo menos, do conhecimento antecipado destes, que, no entanto, nada fizeram para os impedir porque previam que, com a sua ocorrência, o público seria mobilizado para apoiar o Governo na guerra contra o terrorismo e no aumento do orçamento militar e da espionagem. Uma variação desta teoria pretende que os serviços secretos israelitas, a Mossad, sabia do que ia acontecer mas nada fez, pois esperaria que dos ataques emergisse uma opinião pública anti-árabe e pró-israelita. No pólo oposto destas teorias, estão aquelas para quem as causas dos ataques residem exclusivamente em Bin Laden e no seu grupo, a Al Quaeda, nos seus objectivos e nos seus métodos. Só eles os poderiam levar a cabo e, logicamente, se eles forem eliminados, os ataques não se repetirão e o problema estará resolvido. Esta última teoria é muito próxima da interpretação oficial do 11 de Setembro.

As teorias da conspiração são assim hostis a explicações que procurem causas em factores sociais e políticos colectivos não redutíveis a indivíduos ou grupos e, portanto, susceptíveis de causar os mesmos acontecimentos ou outros semelhantes mesmo se tais indivíduos ou grupos não existirem. Mas as dificuldades das ciências sociais durante este ano não resultaram apenas da proliferação das teorias da conspiração. Resultaram também da ideia, prevalecente sobretudo nos primeiros meses após os ataques, de que tentar compreender, explicar ou contextualizar o 11 de Setembro equivalia a trivializá-lo, a reduzir o seu horror, se não mesmo a desculpá-lo e a mostrar simpatia para com os seus autores. Não conheço nenhum cientista social sério que não tenha expressado a sua condenação inequívoca de um acto tão brutal quanto gratuito e injusto e que não tenha manifestado a sua solidariedade para com as vítimas inocentes. No entanto, no momento em procurou uma explicação ou uma compreensão, foi em regra publicamente censurado e, por vezes, com uma violência nada habitual em democracia. Não foi a primeira vez que a opinião convencional reagiu com o dito: "tudo compreender é tudo perdoar". Foi, por exemplo, assim que reagiu quando os primeiros criminologistas, no final do séc. XIX, procuraram causas sociais ou biopsíquicas para as acções dos criminosos. Mas nos últimos cem anos nunca tal reacção tinha sido tão intensa e tão estridente.
A pouco e pouco, porém, os cientistas sociais foram-se recompondo e os resultados das suas investigações não tardarão a ser conhecidos. Por agora, há a referir as linhas principais de investigação e as perguntas que elas suscitam. Eis algumas delas.

1. O que é o terrorismo e quem o pratica? Em certos momentos da história de diferentes sociedades, certos conceitos adquirem uma corrência inusitada e com ela vai normalmente de par a vacuidade do seu conteúdo. São conceitos que adquirem uma capacidade voraz de expansão. No passado, em momentos de maior repressão, aconteceu isso com o conceito de comunismo. No Portugal do Estado Novo era comunista (ou filocomunista) no discurso oficial aquele que se opunha mais veemente e ameaçadoramente contra o regime. Nos EUA da era do macartismo (anos 50) era comunista quem se manifestava com menos entusiasmo ou com mais espírito crítico em relação à onda de conservadorismo que assolava o país. Foi assim que R. Oppenheimer perdeu a confiança das autoridades, apesar de ser o pai da bomba atómica. Em condições politicamente opostas, no Portugal do imediato pós-25 de Abril, era fascista todo aquele que manifestasse menos entusiasmo pela revolução em curso. É isto o que sucede hoje com o conceito de terrorismo e de terrorista. Qualquer acto de opinião política extra-parlamentar, mesmo não violento, pode ser considerado potencialmente terrorista na medida em que a não-violência pode sempre redundar em violência. Quem quer que mostre menos entusiasmo pela guerra contra o terrorismo carrega consigo a suspeita de ser, pelo menos, amigo de terroristas.

A história do conceito de terrorismo é complexa. Mas em tempos menos agitados que o presente tende a significar actos de violência indiscriminada e, portanto, potencialmente contra vítimas inocentes, cometidos por grupos organizados, com fins políticos ou outros, mas sempre com o objectivo de criar pânico e intimidação no Estado e/ou na população civil. Quando o Estado está directamente envolvido em tais actos, fala-se de terrorismo de Estado, e se são praticados pelas Forças Armadas fala-se de "guerra suja". À luz desta definição, os ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono são actos terroristas. Mas são igualmente actos de terrorismo, por vezes terrorismo de Estado, muitos outros actos de violência política, entre os quais muitos em que os EUA colaboraram activamente para depor Governos considerados hostis aos interesses dos EUA (quase sempre idênticos aos interesses de empresas norte-americanas): o Irão em 1953; a Guatemala em 1954; o Líbano em 1956; a República Dominicana em 1965; o Chile em 1973. Em muitos casos, isso significou financiar grupos que praticavam violência indiscriminada contra civis e eram por isso terroristas. Ainda na década de setenta, o apoio à Unita em Angola; na década seguinte, o apoio à Renamo em Moçambique, aos Talibãs e mujaedines no Afeganistão, aos grupos paramilitares conhecidos por "contras" na Nicarágua e El Salvador. No caso afegão, a jihad armada é talvez mais um produto da CIA do que do Islão.
Ao contrário do que pretende a interpretação oficial do 11 de Setembro, reconhecer estes factos não significa desculpar o terrorismo. Significa, pelo contrário, considerar que é um fenómeno muito mais amplo e recorrente e que para lhe pôr fim é necessária uma mudança radical no sistema de relações internacionais vigente e um reforço dramático de umas Nações Unidas transformadas.

2. Em que é que o 11 de Setembro é uma novidade? Não é hoje fácil saber em que medida o 11 de Setembro transformou o mundo ou, ao invés, em que medida é ele o produto de um mundo transformado. A novidade dos ataques reside em três factores: na escala da violência levada a cabo, não por um Estado inimigo, mas antes por agentes "privados"; na sofisticação tecnológica; no facto de atingir os símbolos do poder mundial hegemónico, no território deste e usando instrumentos de tecnologia avançada por ele desenvolvidos. O problema não está, pois, na identificação da novidade, mas nas suas causas e no impacto que pode ter. Será o 11 de Setembro um resultado perverso da globalização? Em boa medida é-o, pois foi a globalização que permitiu a difusão das tecnologias, que acelerou os processos migratórios, que liberalizou os mercados financeiros, tornando-os insensíveis aos motivos da circulação do dinheiro, que limitou a capacidade dos Estados para fiscalizarem as acções dos que actuam nos seus territórios. Se assim for, é possível afirmar que depois do 11 de Setembro se aprofundou a complexidade da globalização. Desde Novembro de 1999 em Seattle e desde Janeiro de 2001 em Porto Alegre, sabíamos que a globalização neoliberal hegemónica tinha criado o espaço e a necessidade para uma globalização alternativa pela solidariedade, pelos direitos humanos, pela luta por um modelo de desenvolvimento sustentável, enfim, pela justiça social global. Desde o 11 de Setembro, ficámos na expectativa angustiante de estar na forja uma terceira forma de globalização, a globalização do terror. E se tal hipótese fatídica se confirmar, qual o melhor meio de a combater? 3. A injustiça global fomenta o terrorismo? Esta questão ainda não está no centro dos debates, mas prevejo que venha a estar nos anos mais próximos. Nenhuma injustiça de nenhum tipo justifica o terrorismo, uma vez que este inclui sempre a possibilidade da destruição de vidas inocentes. Mas o agravamento das desigualdades sociais entre ricos e pobres e o aumento da pobreza e da exclusão mais abjecta, paredes meias com a opulência mais escandalosa, não podem deixar de criar ressentimento e desespero. Claro que estes podem ser produtivamente aproveitados para ampliar e fortalecer a luta pacífica contra a globalização neoliberal e por um mundo melhor, mais justo, mais pacífico e ambientalmente mais equilibrado. É essa luta e são esses objectivos que presidem ao Fórum Social Mundial e à globalização alternativa e solidária que ele constitui. Mas é evidente que o ressentimento e o desespero podem igualmente ser manipulados por grupos extremistas para atingir os seus objectivos, e estes podem ter menos a ver com a justiça social do que com a luta contra Satã ou o império do mal e incluir, entre os seus métodos, o "terrorismo dos pobres". Dir-se-á que se o objectivo de tais extremistas não é a justiça social global, lutar por esta de pouco adiantará como medida preventiva contra o terrorismo. Mas poderá contra-argumentar-se que, não sendo possível eliminar a possibilidade de grupos extremistas, é possível criar contextos sociais e políticos que eficazmente isolem esses grupos e lhes retirem o apoio e a legitimidade populares que fazem deles os salvadores e os vingadores dos oprimidos. Estou convencido de que, a longo prazo, a diminuição da desigualdade no mundo e o concomitante aumento da inclusão social e da participação democrática serão os remédios mais eficazes contra o terrorismo e, em geral, contra todas as formas de violência, organizada ou não, política ou não política.
4. As diferenças culturais ou religiosas fomentam o terrorismo? Também nesta caso, é difícil saber em que medida o 11 de Setembro é uma causa ou uma consequência do choque de culturas. Sem dúvida que o 11 de Setembro foi um choque cultural antes de mais para os próprios norte-americanos. Mesmo para um observador estrangeiro que passa vários meses por ano nos EUA, como é o meu caso, é surpreendente a perplexidade dos cidadãos deste país ante a constatação do ódio que gente tão estranha, tão diferente e tão distante lhes possa ter e, sobretudo, ante a possibilidade de esse ódio se traduzir numa agressão violenta no seu próprio território. Afinal, a América está fundada sobre o mito da terra prometida, abençoada por Deus, com graças excepcionais que fazem dos EUA o país mais cobiçado do mundo e os tornam (por vezes, relutantemente) nos guardiães do mundo livre, democrático e civilizado. Este mito é confirmado todos os dias em práticas tão diferentes quanto o afluxo constante de imigrantes em busca de uma vida melhor e a organização militar territorial. A qualquer estrangeiro, é surpreendente que as forças armadas dos EUA não estejam dispostas no território para o defender de possíveis invasores, como acontece em qualquer país, mas estejam antes dispostas em função das suas possíveis missões em diferentes regiões do mundo.

Nestas condições, se é pouco imaginável que estrangeiros considerem a globalização hegemónica um mal, é-o ainda menos que esse mal seja atribuído à América e que lhe façam pagar um preço por ele. A mudança cultural que está a ocorrer nos EUA em resultado do 11 de Setembro corre por enquanto em labirínticos rios subterrâneos e não se sabe sob que formas aflorará no futuro: em correntes caudalosas e avassaladoras ou em deltas aprazíveis, repousados e em harmonia com o meio ambiente?
Mas esta é a face menos visível do choque cultural. A mais visível é obviamente a que resulta da litania, tanto dos conservadores do Ocidente como dos do Oriente, de que o choque das culturas ou das civilizações está em curso e de que as Cruzadas dos cristãos, com que se iniciou o segundo milénio, estão a ser vingadas pelo fundamentalismo Islâmico no início do terceiro milénio. Nesta leitura, o 11 de Setembro é simultaneamente uma consequência de longa duração e uma causa de duração imprevisível do choque de culturas. Se a globalização neoliberal veio pôr fim ao desenvolvimento nacional que muitos países periféricos tiveram na década de setenta, declarada pela ONU como a década do desenvolvimento, a leitura do choque cultural ou civilizacional pode pôr fim a todos os avanços no reconhecimento das diferenças e na promoção do multiculturalismo granjeados nas duas últimas décadas.

O choque de culturas é particularmente inverosímil quando aplicado ao Islão que tem a seu crédito uma história de tolerância e de convivência com a diferença (que, contudo, nunca incluiu as mulheres) de que nem os cristãos nem os judeus se podem orgulhar. Talvez por isso e porque os muçulmanos são hoje minorias importantes, tanto nos EUA como na Europa, e são maiorias em muitos países "amigos" noutros continentes, a leitura do choque entre culturas teve pouca duração na sua formulação inicial e foi sendo substituída por uma variante interna, a do choque entre os bons islâmicos, contra os quais o Ocidente nada tem, e os maus islâmicos, contra os quais a luta será implacável e interminável se tal for necessário. Esta leitura não tem mais consistência do que as teorias da conspiração referidas acima. O que há de específico no Islão que torna crucial a imposição a partir de fora de uma distinção tão fracturante? Não haverá igualmente que distinguir entre bom e mau cristianismo ou entre bom e mau judaísmo? Não será preferível pensar que em todas as culturas ou civilizações há bons e maus cidadãos e que as leis nacionais e internacionais devem ser accionadas para punir os casos em que a maldade se traduz na prática de crimes?

Um futuro incerto

As possibilidades de futuro nunca foram tantas e tão discrepantes. Não sabemos se estamos no fim de uma época se no começo de uma época. Este último ano ora pareceu o mergulho num novo inquietante, ora a repetição mil vezes ampliada de uma normalidade que só por isso pareceu anormal. Num mundo polarizado entre poderosos e oprimidos e entre ricos e pobres, os oprimidos e os pobres continuaram a viver o seu mundo de humilhações e privações. Alguns suficientemente menos oprimidos e menos pobres para lerem ou verem notícias poderão ter tido um consolo momentâneo ao constatarem que os poderosos e os ricos também podem ser humilhados. Mas esse consolo em nada se traduziu que melhorasse de facto as suas experiências e as suas expectativas de vida. Por sua vez, os poderosos e os ricos e os que vivem em condições suficientemente próximas das deles para não se sentirem nem oprimidos nem pobres, perderam a inocência ao verificar o ressentimento e o desespero que as desigualdades e a humilhação podem causar e as reacções violentas e terríveis a que podem dar azo.
Bin Laden e os seus acólitos cometeram um crime contra a humanidade que o tribunal penal internacional poderia vir a julgar e a punir ante uma opinião pública confiante na eficácia das instituições democráticas. Em vez disso, iniciou-se uma guerra, que não pôde ser declarada como tal, contra um inimigo mal definido e com objectivos suficientemente vagos para poder continuar enquanto os interesses particulares dos que a promoveram o exigirem. Com isso, fizeram-se mais vítimas inocentes; violaram-se os direitos humanos como se quem foi vítima de uma violação brutal dos direitos humanos se pautasse pelo mesmo código de conduta dos seus agressores; intimidaram-se os opositores políticos e procurou-se limitar o âmbito e o modo do dissenso legítimo; perdeu-se o pudor em ocultar que as regras da ortodoxia económica neoliberal são afinal flexíveis e podem ser alteradas por razões políticas, legitimando o perdão e o reescalonamento da dívida externa do Paquistão apenas pelo papel deste na luta contra o terrorismo.

A incerteza do futuro pode resumir-se nesta pergunta: até que ponto pode a democracia resistir contra aqueles que em nome dela destróem as suas condições de sobrevivência?


Publicado na Visão especial 11 de Setembro

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos