Recapitulemos o drama. Os EUA decidiram invadir o Iraque e não é previsível que algo os possa deter. Conquistar o Iraque é considerado essencial para controlar a região. Em primeiro lugar, é um alvo mais fácil que o Irão porque, enquanto o poder neste último é ocupado por dois complexos estratos de poder (secular e religioso) sobrepostos onde os indivíduos pouco contam, no Iraque o poder está nas mãos de um só homem e bastará derrubá-lo. Em segundo lugar, o Iraque tem uma cultura secular (em tempos recentes, cultivada pelo partido de Saddam Hussein, mas isso não é dito) que facilita a segurança das futuras bases militares, uma segurança que é sempre precária nos estados religiosos da Arábia Saudita e do Kuwait onde os norte-americanos serão sempre infiéis. Entretanto, e porque o Iraque é muito mais "complexo" que o Afeganistão, consultam-se os dossiers da ocupação do Japão e da Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, para escolher o melhor sistema pós-Hussein. Por seu lado, os especialistas militares fazem cálculos de custo/benefício. Um dos que veio a público calcula que morrerão 75.000 pessoas (na esmagadora maioria iraquianos), o que é considerado um preço "razoável" para os benefícios que advirão da conquista.
Não sabemos se estes factos são o fim ou o começo de uma época. Mas há algo neles intrigantemente repetitivo. De facto, não é a primeira vez que Bagdad se revela importante para os destinos do mundo e é, por isso, objecto de cobiça. Entre 750 e 1258 da nossa era, Bagdad foi a capital do império islâmico e, entre o séc. VIII e o séc. X, viveu um período de esplendor social e cultural que fez dela o centro do mundo. A geografia do séc. X descrevia Bagdad como estando "perto do centro do mundo" pelo seu esplendor e pela crença que a espécie humana teria ali nascido, na Mesopotâmia, uma crença que se manteve até à nossa época. Esses dois séculos foram a idade de ouro, do desenvolvimento das artes e das ciências, das escolas de medicina e de direito, dos observatórios astronómicos, dos contos das Mil e Uma Noites. Foi em Bagdad que se preservou a filosofia grega, tornando possível que, séculos mais tarde, os tradutores de Toledo entregassem esse legado à cultura ocidental. Mas Bagdad foi importante nesses séculos, como cidade global, centro comercial da região do mundo, o Médio Oriente, que até ao séc. XIV foi o ponto fulcral do sistema mundial que assegurou as trocas comerciais entre o Oriente e o Ocidente. Por ela passava um dos três grandes caminhos para o Oriente antes de os Portugueses descobrirem o quarto no séc. XV, a partir de então, dominante. Durante quinhentos anos, Bagdad foi a referência do "civilizado" e do "moderno". Quase todas as especificidades europeias a que Max Weber atribuiu a génesis da Modernidade ocorreram séculos antes no mundo muçulmano.
Pela sua importância, Bagdad foi sempre objecto de cobiça. Em 1258, quando estava já longe do seu apogeu, Bagdad foi conquistada e parcialmente destruída pelos Mongóis. O escritor persa, Wassaf, que testemunhou a queda de Bagdad, descreveu de forma inesquecível o horror da cidade transformada "em brinquedo do monstro Tártaro."
A dívida histórica do Ocidente é grande para com Bagdad. A ela regressamos sempre que visitamos as raízes da nossa cultura. Desta vez, porém, o Ocidente parece estar a regressar a Bagdad com outro espírito, o dos invasores Mongóis. Daí a dúvida se este regresso não é afinal o regresso do "monstro Tártaro", sob a pele de um Ocidente que a inexorável jangada de pedra separou há muito das suas raízes, dando origem a um despotismo bem maior do que o despotismo oriental de que falavam Marx e Weber.