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03-02-2003        Folha de São Paulo
Não é a primeira vez que, no último meio século, políticos de esquerda chegam ao poder por via democrática no continente latinoamericano. No próprio Brasil, João Goulart (1961-1964), no Chile, Salvador Allende (1970-1973) e na Venezuela, Hugo Chavez (1998-). Os dois primeiros casos terminaram violentamente em ditaduras e o terceiro está à beira do colapso. Em todos os casos, a interferência dos EUA foi importante. Faz, pois, todo o sentido perguntar o que distingue Lula dos casos anteriores e nos faz crer que o seu destino será diferente. Mesmo sabendo que as condições são sempre diferentes e que a história não se repete, o que está em causa não é o destino específico desta exaltante experiência política, mas antes a análise dos seus factores de exito . Para além de muitos outros factores - densidade política do PT, consolidação democrática, carisma de Lula - o que verdadeiramente distingue Lula é a substituição da ideologia pela ética enquanto registo da confrontação política. Em vez do socialismo ou da revolução bolivariana, a honestidade e a transparência do governo, a solidariedade para com os mais fracos, a luta contra a fome e a pobreza. Esta reconfiguração ética do seu programa abriu espaço para os dois grandes factores do seu êxito: no plano interno, a construção de alianças amplas e a redução da rejeição; no plano externo, a credibilidade do seu propósito de respeitar os compromissos financeiros do país, utilizando a pequeníssima margem de manobra para realizar políticas sociais, uma postura algo semelhante à mais recente do FMI. O primeiro factor permitiu-lhe ser hoje um dos políticos eleitos com maior número de votos na história da democracia. O segundo factor fez com que os investidores e credores estrangeiros passassem da hostilidade à neutralidade armada.
Estes factores parecem fazer assentar a diferença de Lula no seu realismo. Mas, assim sendo, onde está a utopia? Qual é o significado político real do ex-operário a subir a rampa do Palácio do Planalto? A questão básica é de saber se e em que medida o governo de Lula conseguirá alterar as estruturas de poder social que transformaram o Brasil num dos mais injustos países do mundo. Uma resposta positiva a esta questão depende, em meu entender, de uma série de condições exigentes. Passo a mencionar as principais. A primeira é que o governo de Lula capitalize nas melhores práticas políticas de que o PT foi protagonista nos últimos dez anos. Entre essas práticas, destacam-se as experiências de democracia participativa, sob a forma do orçamento participativo, na gestão de mais de cem cidades do Brasil. O PT deve o seu êxito ao ter sido sempre um partido-movimento e não pode deixar de sê-lo pelo facto de ser governo. O PT, que inventou o orçamento participativo, deverá inventar outras formas de democracia participativa adequadas aos diferentes níveis e sectores da governação. Ou seja, sem a reforma democrática do Estado é pouco crível que qualquer outra reforma tenha êxito. Esta condição está relacionada com a segunda: a gestão sábia e democrática das frustrações. A eleição do Lula aumentou exponencialmente a discrepância entre as experiências actuais da grande maioria dos brasileiros e as expectativas quanto às melhorias que poderão decorrer do seu governo. Tal discrepância vai redundar em frustração que só não será disfuncional para o governo de Lula se for assumida democraticamente, ou seja, se o governo de Lula for solidário mesmo na formulação da impossibilidade de o ser. A este respeito há um paralelo perturbador entre o Brasil de hoje e a África do Sul de há dez anos. Em ambos os países, o simbolismo da subversão democrática atingiu o paroxismo: num caso, um negro a chegar ao poder, no outro, um operário. Tal como Lula, Mandela escolheu para as áreas económicas do governo gente credível ante "os mercados", deixando as áreas sociais a cargo de políticos mais à esquerda. Não tendo sido estabelecidas nenhumas mediações entre as duas áreas, as áreas sociais acabaram por definhar ante a necessidade de abrir o país aos imperativos neoliberais, colocando a grande central sindical, a COSATU, afecta ao partido do governo (o ANC), numa posição de impasse que dura até hoje. A situação brasileira é felizmente distinta, não só porque a mediação está criada através do forte investimento político no Conselho Económico e Social, mas também porque a abertura ao neoliberalismo foi feita antes e zelosamente pelos governos de FHC. Em todo o caso, as dificuldades que se avizinham terão de ser parte da democracia e não o limite desta.
A terceira condição reside em o Brasil deixar de se ver como demasiado grande e passar a ver-se como demasiado pequeno, pelo menos na sua capacidade para resistir à globalização neoliberal. Essa miniaturização criará a energia para duas globalizações regionais alternativas. A primeira é continental: o Mercosul. É sabido que a Associação de Livre Comércio das Américas (ALCA) transformará o Brasil numa imensa maquiladora como está a acontecer no México (e sem ter o benefício da emigração à mão). A ALCA inviabiliza, à partida, a ideia do novo contrato social proposta pelo Presidente Lula. Não vai ser fácil resistir à imposição da ALCA e será impossível sem uma alternativa consistente. O Mercosul é a instância que confere credibilidade à ideia da aproximação ao capitalismo social democrático da Europa, ou seja, à combinação de elevada competitividade com elevada protecção social mediante uma regulação pública activa. A desglobalização só faz sentido enquanto proposta de reglobalização alternativa. O êxito desta globalização regional vai depender em parte da própria União Europeia e da sua capacidade para abandonar a hipocrisia de querer ser uma alternativa global aos EUA sem, contudo, nunca os confrontar fora da Europa. A outra forma de globalização regional alternativa é transcontinental e diz respeito à articulação política com outros países de desenvolvimento intermédio, nomeadamente com a Índia, a China e a África do Sul. Só assim será possível confrontar o super-Estado paralelo constituído pelos imperativos transnacionais do neoliberalismo. A articulação entre o Brasil e a Índia no âmbito da Organização Mundial do Comércio, no que respeita à luta pela supressão dos direitos de propriedade intelectual em casos de emergência de saúde pública (como, por exemplo, no caso do HIV/SIDA), é um bom exemplo do muito que pode ser feito.
A quarta condição para que a diferença de Lula faça diferença é paradoxalmente global e nacional e exige um esforço aturado de mediação entre diferentes escalas e horizontes de transformação social. Acaba de realizar-se em Porto Alegre o Fórum Social Mundial. Não é segredo para ninguém o papel do PT e dos movimentos sociais e ONGs seus simpatizantes no êxito do Fórum. Teria sido trágico se a óbvia autonomia recíproca entre o governo Lula e o FSM tivesse degenerado numa forma de "dissonância cognitiva", quer sob a forma de uma distanciação agressiva próxima do enjeitamento, por parte do governo do Lula, quer sob a forma da utilização do Fórum, por parte de grupos esquerdistas, dentro e fora do PT, para dar cobertura internacional às críticas ao "realismo" ou "oportunismo" lulista. A primeira atitude teria retirado a utopia ao realismo, enquanto a segunda teria retirado o realismo à utopia. Qualquer delas ter-nos-ia deixado na condição estúpida de não termos aprendido nada nestes anos. Sobretudo não termos aprendido que o outro mundo possível só é possível neste mundo e não noutro. Felizmente, o exigente esforço de mediação para neutralizar qualquer destas atitudes foi coroado de êxito. O êxito do Forum foi o primeiro e mais auspicioso augúrio da era Lula. Ao Governo e ao movimento dos movimentos compete dar sustentabilidade às mediações sem as quais a era Lula não terá identidade própria.

 
 
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Boaventura de Sousa Santos