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17-04-2017        Público

A lei impulsionada pelo Bloco de Esquerda e publicada a 22 de Agosto, que regulará a gestação de substituição, encontra-se já em processo de regulamentação. No âmbito dos restritivos enquadramentos jurídicos dos países europeus, a lei representa uma ampliação dos direitos reprodutivos, seja desde o ponto de vista das mulheres e dos casais heterossexuais que não podiam ter crianças por outros meios, seja desde a perspetiva de quem altruistamente decida doar a sua capacidade gestante a outras pessoas. Porém, as restrições impostas no acesso a esta técnica de procriação medicamente assistida representam, ao mesmo tempo, uma grave recuperação da discriminação homofóbica na legislação portuguesa.

Portugal foi pioneiro, no contexto europeu, na inclusão do princípio de não discriminação por orientação sexual no seu artigo 13 da Constituição, no ano 2004. Desde aquele momento, têm-se erradicado, paulatinamente, algumas das mais importantes discriminações homofóbicas da sua arquitetura jurídica. Não obstante, apesar da inovação constitucional, estas discriminações não desapareceram automaticamente do texto da lei. Assim, seis anos decorreram até à modificação do Código Civil que permitiu o aceso ao casamento por parte de pessoas do mesmo sexo legal. Outras discriminações demoraram ainda mais. Por exemplo, apesar da brutal vulnerabilidade jurídica em que esta restrição colocava as crianças das famílias homoparentais, apenas no início de 2016 foi por fim reconhecido, graças à chamada “geringonça” política, o direito à adoção por parte de casais gays e lésbicos. O acesso às técnicas de procriação medicamente assistida demorou ainda alguns meses. Finalmente, em Julho de 2016, o Estado deixou de exigir às mulheres que entrassem nas clínicas de fertilidade na companhia de um homem. Terminou assim o exílio reprodutivo das mulheres solteiras e dos casais lésbicos às clínicas de países vizinhos, como nos obscuros tempos da criminalização do aborto.

Para alguns, o artigo 13 não era incompatível com estas discriminações. Não é homofobia, argumentavam, a palavra casamento é que só se refere à união entre um homem e uma mulher. Não há discriminação, sentenciavam, trata-se só de garantir uma figura paterna e outra materna que as crianças necessariamente precisam. Nem é inconstitucional, afirmavam, que as tecnologias reprodutivas se submetam aos ditames da heterossexualidade obrigatória. Contudo, é hoje evidente que a conceção do casamento enquanto instituição exclusivamente heterossexual não foi nunca uma questão semântica, apenas homofóbica. Que uma criança com dois pais tivesse legalmente só um não era uma lei nem da natureza nem da psicologia, era apenas homofobia. Da mesma forma que um casal lésbico tivesse que sair do país para ter crianças nunca foi um problema biológico. Era homofobia.

Estas reformas legislativas não fizeram desaparecer por magia a violência homofóbica das ruas, das aulas ou até das clínicas de fertilidade, tal como a reforma constitucional não fez com que a homofobia legislativa fosse erradicada de um dia para outro. Mas conseguiu, no entanto, estabelecer um quadro jurídico propício para que uma lei discriminatória fosse desaparecendo a seguir à outra, graças à luta dentro e fora das instituições.

Até agora foi assim. Porventura para compensar a vertigem gerada pelo vazio de leis discriminatórias, a lei de gestação de substituição converte, novamente, os direitos reprodutivos num terreno de privilégio heterossexual. Para entender até que ponto é este o caso, a perspetiva de quem decide gestar para outras pessoas é esclarecedora. Um dos debates ainda abertos no processo de regulamentação serve precisamente para entender a importância do ponto de vista da autonomia da gestante. Segundo alguns, esta deveria ter sido, previamente, mãe. A eventual limitação serviria para reforçar o consentimento informado, assim como para descartar algumas complicações médicas. Porém, argumentam outros, esta condição limitaria de forma inaceitável a liberdade de decisão das potenciais gestantes. Seja qual for o resultado deste debate, parte do seu interesse reside no facto de destacar a constante precaução adicional quando está em jogo a autonomia reprodutiva.

Lamentavelmente, a lei impõe, desde a sua conceção, uma restrição muito mais grave do que esta dita autonomia. No caso da gestante desejar ajudar dois casais igualmente incapazes de gestar, um formado por dois homens, e outro por um homem e uma mulher, a lei é perentória: ela só poderá ter nove meses no seu útero a criança de um casal heterossexual. Deste modo, a limitação no acesso a esta técnica apenas a mulheres em situações clínicas que impeçam a gestação empurra as voluntárias, na prática, para uma espécie de homofobia obrigatória. Claro que elas não terão que escolher, por exemplo, entre gestar para o seu melhor amigo heterossexual e ao seu melhor amigo não heterossexual. O Estado pré-selecionará os candidatos por elas, excluindo de antemão qualquer projeto familiar que não inclua uma figura materna.

Desta forma, a lei impede o acesso à gestação de substituição àqueles para quem esta representa, tal como para as mulheres sem útero, a única forma de reprodução possível. Certamente, os casais lésbicos poderão continuar a fazer uso de outras técnicas de reprodução assistida e, em casos extremos, também desta. Pelo contrário, para os casais gays, da mesma forma que para os homens solteiros seja qual for a sua orientação sexual, recorrer à ajuda altruísta de uma gestante constitui um crime com pena até um ano de prisão. Em consequência, a gestação de substituição continuará, para os projetos familiares sem mães, a ser uma opção completamente restringida a quem tenha a possibilidade de investir enormes quantias de dinheiro para aceder a esta técnica no estrangeiro.

Em conclusão, independentemente da regulamentação definitiva, esta lei constitui já o novo bastião da organização heterossexual do âmbito reprodutivo e familiar. Quando a consideramos a par da referida elitização económica, revela-se justamente o contrário do que se podia esperar da esquerda portuguesa. Só resta confiar que, neste caso, não tenha que passar uma década para pôr em evidência o profundo conflito que supõe o seu enquadramento no marco constitucional.


 
 
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Pablo Pérez Navarro



 
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