Centro de Estudos Sociais
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20-02-2003        Visão
As manifestações do último fim de semana contra a guerra no Iraque têm um significado político que vai muito para além do objectivo imediato do protesto contra a guerra e da luta pela paz. O número de manifestantes é impressionante, sobretudo na Europa, EUA, Canadá, Austrália e América Latina mas, mesmo assim, não exprime plenamente o sentimento de revolta dos cidadãos de todo o mundo ante a vertigem belicista e expansionista que, mais uma vez, se apoderou de algumas potências ocidentais. Em sociedades em que as manifestações deste tipo no espaço público são menos usuais - por serem culturalmente estranhas e/ou politicamente reprimidas - outras expressões de revolta são hoje identificáveis e não são menos significativas. Por exemplo, nas sociedades islâmicas, do Médio Oriente, África e Ásia, onde a religião permeia a vida, está a aumentar dramaticamente a afluência às mesquitas e tal facto é indicativo do mesmo sentimento de revolta (e também de impotência) que noutros lugares se expressa na praça pública. E há ainda que contar com a expressão de solidariedade por parte de países que transformam a justificação da não participação activa nos protestos numa forma eloquente de participação. É o caso dos países africanos que, através dos seus líderes e associações, chamaram a atenção durante esta semana para as guerras que avassalaram a África nestes últimos cinquenta anos - morreram mais pessoas em vários tipos de guerra do que na Segunda Guerra Mundial - e a que o mundo assistiu cinicamente distraído e para o temor de que uma manifestação mais afoita de solidariedade contra a guerra no Iraque faça desabafar sobre eles mais represálias por parte dos EUA, inviabilizando ainda mais a tarefa absurdamente gigantesca de garantir a sobrevivência das populações africanas.
Fica, pois, claro que as manifestações do último fim de semana, eloquentes em si mesmas, são a voz que traduz outras vozes (e silêncios) em que se exprime a mesma luta pela paz e pela justiça social. Qual é, pois, o seu significado político? Em primeiro lugar, elas são uma emergência, o embrião de um novo actor político transnacional em que pode vir a assentar, no futuro, uma sociedade civil global. A convocação mundial das manifestações foi decidida no Fórum Social Europeu que se realizou em Florença, em Novembro passado, e que terminou, ele próprio, com uma marcha pela paz com mais de um milhão de participantes. Por sua vez, este Fórum é uma emanação do Fórum Social Mundial que, em sua segunda edição em Janeiro de 2002, em Porto Alegre, decidiu a realização de foros regionais e temáticos. O Fórum Social Mundial é o movimento dos movimentos que, ainda de forma incipiente, organiza globalmente a luta contra o neoliberalismo, pela justiça social e pela paz. O seu significado político reside em ter mostrado que há alternativas à globalização neoliberal, agora geminada com a globalização da guerra imperial.
Em segundo lugar, as manifestações, para além da sua articulação global, têm significado político nacional nos diferentes países em que se realizaram e este será a curto prazo, quiçá, o mais consistente. O facto de elas terem tido maior expressão nos países do Norte e terem sido particularmente intensas nos países cujos dirigentes políticos se alinharam com os EUA - com particular destaque para a Inglaterra, a Espanha e a Itália - significa, por um lado, que a nova onda de expansionismo violento, imperial, ao contrário da onda colonial de finais do séc. XIX, não conta com o apoio dos cidadãos do Norte. Foi necessário um século para que estes de dessem conta de que existe um Sul e que esse Sul é feito de gente igual a nós em dignidade, respeito e aspiração de direitos. Significa, por outro lado, que o fosso entre cidadãos e dirigentes políticos é cada vez maior e que a democracia representativa está agora submetida a um teste decisivo. Se a guerra ocorrer com as consequências que se prevêm e, apesar disso, líderes políticos como Bush, Blair, Berlusconi, Aznar e Barroso ganharem as próximas eleições, teremos passado, nos respectivos países, de democracias de baixa intensidade para democracias de baixíssima intensidade.
As manifestações representam a aspiração de uma democracia de alta intensidade em que a participação dos cidadãos e a representação política convergem na construção de decisões políticas prudentes ancoradas nos anseios das populações. Essa aspiração interpela, não só os dirigentes políticos, como os media. Um pouco por toda a parte, assistimos nos últimos tempos à incontinência e à insensatez de comentadores políticos, desfazendo-se em arengas, por vezes longas, justificando a guerra. A estes novos estadistas da ignorância e da arrogância, as manifestações responderam que há limites para manipulação e para a falta de senso.

 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos